terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Iraquara, muito além do esquecer



Por Germano Xavier

Ouvindo Mautner, com "Todos os fogos, o fogo" do Cortázar¹ aqui ao meu lado direito, espiando-me para ver se não farei nenhuma besteira, dou-me mais uma vez a esta "coisa assassina" que é escrever. É esta minha labuta diária, brotada numa sexta-feira treze de algum mês do presente ano, ainda girino em mil novecentos e oitenta e quatro, indefeso nascendo no único hospital da cidade, ali na Praça das Árvores – ainda hoje o único, após mais de vinte anos -, a manha para minhas constantes transformações e reformas humanas interiores. Tem um Dauphine² aqui, vazio, com a chave na ignição – é o que sempre digo a mim mesmo, até quando a chuva aponta longe-perto nos morros gigantes da Chapada Diamantina, avisando-nos sobre o tédio. “Não deseja acelerá-lo?”, diz, sempre, uma voz irrequieta.

Eu falarei de Iraquara, cidade baiana natal, lugar que me possuiu em plenitude até os idos de minha adolescência de quatorze anos. Falarei, falando-me também, porque sou parte. Há de precisarmos da memória, daquele sentir guardado no escrínio de nossa alma, lugar mais ameno. É ela, e também o esquecimento, a mãe de todas as benfeitorias. Eu começo gritando a todos vocês, conhecidos e desconhecidos, que eu perdi Iraquara. Não, eu não estou blefando. Há muito não vivo em Iraquara, não ando suas escuridões noturnas, não cheiro suas manhãs vazias de automóveis nem bebo o rebusnar dos jumentos chegando das vilas e povoados para o movimentado e cansativo dia de feira-livre. Todavia, mesmo sendo este o meu último-inaugural barulho, reforço-me na idéia de pertencimento.

Pertencer é uma palavra difícil, pesa uma tonelada e, para ser mais direto, demanda um conjunto inteiro de vivências. Porque pertencer é ter consciência de construção, de participação, de si próprio. Mas voltemos a Iraquara e às palavras que por ora teço. Minha rua, a Tito Luna Freire, já não é mais a mesma, as praças idem, os domingos de se visitar a parentada, amigos se foram – para nunca mais? -, o Educandário José de Arimatéia não existe mais, as brincadeiras de bola e a amurada pequena do vizinho, onde cada timinho esperava sua vez no “baba” vespertino, também são só lembranças. Muita coisa mudou nesses anos em que andei fora, trocando o encardido dos meus pés pisantes de paralelepípedos sujos de terra vermelha por uma alva pele acostumada ao asfalto sem gordura.

Quando, em mil novecentos e noventa e nove, aportei em outros solos, eu não sabia que o ontem pudesse ter sido o meu último dia como iraquarense nato. Talvez eu jamais desconfiasse de tal acontecimento. Um último dia é sempre algo tão longe, tão dissoluto. O derradeiro dia é tão... tão... infinito. Distante! E também impalpável, incompreensível, sem medidas. Mas, então, o que me faz escrever esta crônica-dor senão a existência de um fim, de uma presente imagem daquilo que se acaba? Por que não deixar um último registro de mim, de uma experiência de troca, para que um derradeiro olhar atinja meu universo e o universo dessa cidade tão nova, mesmo que seja apenas a forma de minha arcada dentária num pão dormido, ali mesmo, sobre a velha mesa de todos os dias?

Perder dói, eu sei. Mas ninguém foi derrotado, é preciso que se diga. Nem eu nem você, absolutamente ninguém venceu. A única vantagem que vejo em tudo isso, em toda essa nossa relação, e isso vale para todos que namoram sua cidade - se é que há vantagem nesse jogo -, é que todos nós aprendemos, e o melhor de tudo, aprendemos a crescer. Não é que eu, Iraquara, filho de tuas profundezas, esteja reclamando a tua face antiga, saudoso e nostálgico. Nada disso. Sei bem que não és mais ingênua como antigamente, que em teus vãos ratos e outras nojeiras compõem agora sua paisagem, o perigo das entradas e saídas, a violência, assim como renovadas fontes de alegria e beleza. Você cresceu, eu também cresci. E continuamos crianças, flores anônimas, desabrochando.

Ao contrário do que possa parecer, Iraquara, só estou cuidando um pouco de ti. Esse cuidado em te querer, inesgotável em riquezas e sofrenças, ambígua fonte de sorrir-chorar, de odiar-amar, que dormir-sonhar, que tanto me formou, não pode tomar sereno e se adoentar. Eu perdi minha cidade, cidade que nem só das grutas será, mas que a ela pertenço. Eternamente. E ternamente. E por isso, e muito por você, Iraquara, é que sigo te esperando lá na frente, "onde ninguém saiba nada sobre os outros, onde todos olhavam fixamente para a frente, exclusivamente para a frente³".


Notas.1 – Escritor belga-argentino, autor da obra-prima O jogo da amarelinha.
2 – Automóvel de origem francesa, fabricado pela Renault em meados do século XX.
3 – Frase retirada do conto A auto-estrada do sul, presente no livro Todos os fogos, o fogo de Julio Cortázar.

3 comentários:

Germano Viana Xavier disse...

Crédito da imagem:

"Esquecimento.
by ~Lanixitah"
Deviantart

Marinha disse...

Vontade de conhecer Iraquara!!! Desejo de ter em minha memória um lugar que inspira tão belo texto!
Bjo e paz, poeta da vida.

CARLA STOPA disse...

Sempre para frente...