Por Germano Xavier
Voltei. Mais uma vez solando as calçadas poeirentas do vermelho-barro da cidade onde nasci. É quando me desponta um movimento no pensamento acerca dos olhares daqueles que são apenas seus visitantes e passageiros. Eu me pergunto sobre o que eles vêem, sobre o panorama imagético que lhes atravessam os sentidos quando rompem suas cercanias, suas serranias. E como são tantos os meus questionamentos! Num misto de preocupação e consciência defensiva, tenho por mim que estes "bandeirantes" intermitentes, turistas vindos dos mais diversificados lugares do Brasil e do mundo, não conseguem abarcar nas vistas nem a mais ínfima parcela da monumental representatividade que a Chapada Diamantina Meridional, em especial o município iraquarense, exerce e tem para revelar. E se achas que o nativo é o abençoado de toda esta história, não se engane, explorar é um verbo que custa caro e oprime quem tem direito.
Por alto, recebendo informações já castigadas pelo uso, através de guias despreparados, com suas frases mecânicas e de pouca criatividade, suspeito que os turistas e os autóctones já se cansaram de ouvir que o nome Torrinha - nome referente à gruta de maior destaque espeleotemático da região e também à cordilheira onde está situada -, vem de uma diminuta formação rochosa que se assemelha muitíssimo à arquitetura de uma torre; como também imagino a restrição no roteiro de desbravamento a que as pequenas empresas de turismo, atuantes e deslocadas principalmente no perímetro que engloba a cidade histórica de Lençóis, distante de Iraquara pouco mais de 50 quilômetros, impõem aos visitantes, quase nunca oferecendo novas opções para o conhecimento do público, cobrando verdadeiras fortunas pelos acompanhamentos e instruções, impedindo a população local, financeiramente desfavorecida, de também usufruir destes divertimentos e oportunidades.
E quem não tem a chance de caminhar pelo universo da região chapadense, mormente de conhecer as naturais belezas achadas na Área de Proteção Ambiental na Bahia (APA Marimbus), perde a graça de não poder ver as enormes cascatas geradas pelos inúmeros rios da região, as campinas entrecruzadas pelos riachos que galopam pelos canais de arenito, os leitos pedregosos que brincam de mistério durante todos os dias do ano; perde a graça, como diria o escritor e poeta iraquarense Ângelo de Mattos¹, de enxergar "os lindos salões existentes no seio das enormes cavernas... cujos tetos parecem ser sustentados por lindas colunas esculpidas pela natureza, as quais são tão perfeitas que parecem ser construídos pelos mais hábeis arquitetos da Terra. A estátua de Moisés" que "parece caminhar" nos seus interiores; "um altar formado na encosta do salão, em cujo centro acha-se um religioso a apregoar; "... a escultura de Moisés a atravessar o Mar Vermelho, seguido de seu povo e perseguido pelo Faraó; esculturas de vulcões em erupção..."; "beduínos a cavalgarem seus camelos no deserto. “O Espírito Santo de Deus em forma de pomba, esculpido pela natureza”, que "parece sobrevoar a gruta; vaga-lumes a lampejarem no seu interior, como se pretendessem banir as trevas; rios cristalinos oriundos de lugares desconhecidos a cortarem a gruta de Norte a Sul; rastros de pessoas adultas e crianças, indeléveis no chão, restos fossilizados de animais antediluvianos escondidos nos cantos mais ocultos da gruta e tantas outras belezas naturais...²"
Sem falar no "cântico mavioso das arapongas e sabiás bicos-de-osso a saltitarem nos galhos mais altos das árvores, as gigantescas gameleiras de folhas robustas a assombrearem o local por onde passam os regatos, as corujas rasga-mortalhas a crocitarem na escuridão da alta noite com seu cântico agoureiro à procura da companheira, as lindas serranias que cortam a chapada, as macegas que ocultam as codornizes e os inhambus que vivem a piar anunciando o anoitecer no sertão, os vaga-lumes a piscarem na noite escura alumiando seu caminho, o curiango-tesoura a fazer suas acrobacias nas curvas da estrada, o silvar da serpente à procura da companheira, os rios que se chocam fazendo remanso, a lograr o desejo da sucuri que, ávida, espreita a passagem de animais de pequeno porte com o fito de saciar a fome, o diamante de cor esverdeada (a mais dura pedra preciosa formada pelo carbônico cristalizado a brilhar no leito do riacho, emitindo chispas a afetar ligeiramente o bom funcionamento de nossa retina". Todo um capricho depositado por mãos magníficas e mais que humanas encontra-se à revelia dos olhos do simples homem, habitante nato e, também, mas em menor grau, ao homem que vem de fora. Biodiversidade que sofre com a falta de estrutura e organização.
O homem ainda não conheceu Iraquara, ainda não sabe o que é verdadeiramente estar sobre o solo diamantino. Ninguém viu nada, ninguém vê. Ninguém nunca viu nem o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente agir em prol da boa manutenção deste espaço sagrado. Só para citar um exemplo de descaso, lembro a ação predatória das pessoas que residem nas serranias, sempre à caça de animais silvestres, contribuindo exaustivamente para a extinção de boa parte da fauna local. Uma catástrofe. É quando rememoro as palavras do poeta Ângelo: "É imprescindível que alcemos vôo rumo ao ponto mais alto das cordilheiras de nossa imaginação e de lá lutemos com veemência contra a ação predatória dos "imperadores" das serranias, para que alcancemos o ponto culminante da realidade brasileira até agora desconhecida³”.
Outra vez em retorno, Iraquara, e você a saber que voltas e regressos sempre me doem. Fica uma sensação esquisita de que não devíamos nos permitir, no canto esquerdo de uma salinha sem vida, a oblação de um cântico de luz. Sofre imaginar que toda volta é um recomeço, e que recomeços tendem ao que não vingou, ao que não foi ou ao que não poderia ser. Combato, hoje, minhas obviedades mais simplistas, e na procura de um fusível perdido, curto um curto que, se não é de choque, é circuito de se ir. Perigo é fazer o retorno impossível, o retorno insubstancioso. Melhor caminhar torto pelo caminho vital, quebrando caras e bocas, beijando luzes e lamas, estéticas joviais. A gente sempre tem a sensação de que na próxima esquina, na padaria da rua, no banco do consultório médico, desponte o algoz voraz, surgindo pelo portão principal, decidido a nos capturar. E para isso retornos servem. Para nos dizer das horas e das lutas possíveis...
Notas.
1 – Escritor e poeta iraquarense, autor de O império das serranias.
2/3 – Excertos retirados do livro O império das serranias, de Ângelo de Mattos Pereira.
3 comentários:
Crédito da imagem:
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by ~drewyboy"
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Toda volta é um recomeço sim...Ou ás vezes um capricho da alma.
Germanamigo
Ora venham de lá esses ossos, juvenil confrade da outra costa atlântica. E porquê confrade? Porque, se quiseres saber mais de mim, lá na Minha Travessa tens tudo "inspilicadinho" hahahahahaha. Velho jornalista e dizem que... escritor. Dizem. Pelo menos, tenho obra publicada...
Adoro o Brasil, conheço dele bastante, mas não Iraquara. Infelizmente. Itapecerica da Serra, já lá estive. Donde, entrei pelo teu enorme e belíssimo País, sem pedir licença e por várias, bastantes vezes.
Iraquara, pelo que nos ofereces, deve ser linda. A nossa santa terrinha é-o sempre. Lisboa é bué da fixe (bué da = muito, de acordo com os meus netos; o que eu aprendo com eles...). Nasci nela e nela vivo.
Fico-me por aqui; e muito obrigado por me teres aturado.
Abs
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