sábado, 26 de fevereiro de 2011

Corre à larga um antes de um depois


Por Germano Xavier

"A escrita é a única forma perfeita do tempo."
(Jean Clézio)


Antes de escrever o poema, a solidão descambou para Maximillien através do vôo leve das moscas em dança de dezembro. Era o Natal a chegar. Nem muito frio nem calor em demasia. O mesmo esperar Papai Noel com o mesmo falso crédito que nela já nascera por lá dos seus oito anos de idade, quando viu seu pai colocando na sarjeta um par de sapatinhos vermelhos, sem nem mesmo se preocupar com qualquer tipo de disfarce. Lua linda no céu escuro e o poema apareceu para Maximillien como um retorno fotográfico aos grandes homens que a fizeram, como uma epifania caminhante, como um brinquedo retorcido entre ares de riso ou uma alegria simples estancada diante dos diantes. Quantidade de mercadoria que o tripulante de uma nave - humana, bom salientar - pode levar consigo sem pagar por elas. Essa caixa toráxica de se caber dores e amargores e risos. E risos. Antes de escrever o poema, Maximillien pensou no pai, sempre preocupado com as contas do mês vindouro, agora já um senhor de atenção monitorada, "imprevisível o humano no homem", pensou, como também pensou na mãe, no irmão, mesmo posta ao revés no sempre andar de sua infância, criança sem local, sem chão, qualquer um. E assim arrevesada, obscura e intrincada, com seu nome de difícil pronúncia, seguiu desopilando suas coisas abstrusas, suas idéias incompreensíveis, seus manejares desordenados. E pensou no cachorro, na mesa onde estava, no pote de manteiga derretida brilhando o amarelo cor de ouro dos ouros falsos, pensou no pacote de biscoito esperando uma fome, no almoço por ser feito, na provável janta que viria, nas alegorias do carnaval próximo - todos arremedos estéreis de se ir em frente. Antes que o poema ocorresse, Maximillien dedicou-se a um qualquer antídoto terminado em um outro qualquer gesto milagroso, para não suster-se como o pobre de espírito se sustem quando de uma enfermidade operante em dor, em moléstia. Ficou ali parada, a escutar o seu instante companheiro, a hora que vivia no ali, no agora-para-sempre. Imótua, os olhos pousados sobre uma hagiografia que destinava a um santo da mãe, pendurado na prateleira menor da cozinha, coisas da mãe religiosa, coisas que não ousava tirar do lugar. Ali, desapossada de si mesmo, vendo perder-se diante do opaco espelho feito na bandeja de prata endireitada e existida em sua direção longitudinal, uma Maximillien comutada, substituída por outra, não sendo o ser dela, irreconhecível a si, igual aos outros, ela em crescimento, descobrindo-se, flor nova, mulher parricida aventada no derrubar muros e bankers das sagradas tradições, pequena demais diante daquele algo que brotava de dentro, a rosa maior, o milhafre sacaneador de almas, saquedor de carnes, a derrisão última, o riso motejador, aquilo que troça, mofa, furo no umbigo, profundo rasgo de morte, de deitar o corpo enorme em ninações. Irrefutável precipício instaurado no dia mesmo, sem mistério de lua ou noite, sem lobisomens, sem vampiros, a queda fatal perante o desarmado desconhecido, que sempre vem quando insuspeito é o tempo, quando a criança de dentro aflora de medo e tomba queda nos abismos gregários do um. Anátema. Maldição. Sossegada estava e agora diletante não sabe o que faz, ou teima. Dissenso. Maximillien, ainda refletida imagem na argêntea peça, delineando as linhas de suas sinuosidades, para numa anomia aguda falsificar-se diante das tais desteceturas. A menina feliz já triste de não saber-se enorme e que sobre a humanidade paira um universo de nem. Amálgama. Autodemissionária, ela corre e atende à sua fraqueza e genuflexiona-se até o piso gélido que suporta o momento. Sem sustentar-se como conveniente, apóia-se autômata sobre o músculo que a exorta a seguir, fato mais que consabido, afeita a uma ordem do dia que quebra-se no enlevo do corte, insuflando-a de formas epigonais ao dia que não é mais o de hoje, fazendo-a fantoche, artífice em solidão completa, em primazia habilitante, num furor de repercussão catártica, traça corroendo o ser antes incorruptível, incipiente, escorregadio, impingido, perspectivando impiedosamente o acontecimento fortuito - e de rumo inalterável por qualquer força -, ou lógico, da ação mágica de escrever um poema, de urdir um simples poema, mero como um gole d'água dado à sede da boca, porém vital como um sopro de amor.

Um comentário:

Germano Viana Xavier disse...

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