O escritor, nem bem terminou de ler a matéria, prostrou-se pateticamente diante da folha em branco. No fundo ele ainda nem imaginava o que iria escrever, apenas desejava. Era um desejo misterioso, como quando nos arrefecemos diante de um susto apenas susto ou de um vulto apenas vulto. O escritor, pensativo, sem pensamentos. Uma pequena gota d'água desce pacientemente da borda do copo que armazena o líquido gelado que daqui a pouco tempo ele beberá aos goles intermitentes. Espanta-se o escritor com o texto que não vem. Ele sabe que não há ninguém em casa além dele próprio e do ser-do-texto. Ele, o escritor, também sabe que há uma vida a existir, suspeita que é também mãe, que pode parir esse filho que teima alimentar-se no útero da vida. Ele sabe ou, ao menos, suspeita. Suspeita que poderá vir a ser condenado por um crime hediondo, caso aborte o rebento. Franze a testa em gesto de repugnância diante de tão acovardado pensar. Transpira, os poros abertos. A temperatura interna aumenta. Lá fora o frio noturno, normalidade. Esboça um desenho surrealista no canto esquerdo superior do papel. Uma bailarina em cima de uma porção de brasas candentes, imaginem a cena. Ele, o escritor, está apelando. Percebe-se sem sorte. Testa a esferográfica de corpo plástico triangular que comprara pela manhã, quando saiu para esticar as pernas. A tinta seca, nova, a ponta virgem, não sai nada. Absolutamente nada é impresso a pelo menos oito minutos. No quarto, o escritor acende a sua esperança opaca, alquebrada, fraquejante. Percebe-se sem o talento de um Dalí, ou mesmo de um Matisse. Não usa cores fortes, tampouco deixa-se influenciar pela cultura popular, mas aprecia, mesmo assim, paisagens oníricas. Não se pode ser Picasso com uma esferográfica de corpo plástico triangular que inicia o despejar de sua carga, agora não mais virginal. Põe o bocal na boca. Com os dentes, fere-o. Pequenas mordidas de desassossego. Surgem deformidades incorrigíveis. O escritor pensa em seus traumas infantes, como quando era obrigado a rezar o terço todinho ao lado da mãe no justo momento em que seu time iniciava um contra-ataque maravilhoso contra um adversário internacional. Pensa na droga da sua vida, o escritor. Pensa na droga que é ele, a começar pelas unhas miúdas. Sempre quis ter unhas grandes, bem cuidadas. Jamais as possuiu. O escritor rói unhas, as suas. O escritor rói unhas da alma, busca, cava, aposta, alegra-se, manifesta desconfiança, depois cinismo, chora, despreza-se, imagina-se adoentado, duvida, sente horror, amaluca-se paulatinamente, intimida-se, suplica, sente saudade, acoberta-se de medo, usurpa, desespera-se diante do nada que é a folha em branco com um esboço surrealista no canto superior esquerdo, aturde-se diante da imprestabilidade que é a sua cabeça, a sua mente, a sua idéia, o seu escrever. O escritor torna-se maníaco de si mesmo. Quer se matar, não pode. Teria de assassinar o texto primeiro, mas o texto nem nasceu. O escritor olha para o birô em madeira negra, bem polida. Pensa no tiro, a arma guardada de seu saudoso avô. Uma carabina, quatro cartuchos novos, os miolos se estatelando nas paredes brancas do quarto. Bebe goles que preenchem a boca numa completude instante. Engole o gole. Logo o vazio, o oco, a não presença, o vago. Vê-se imóvel, sem qualquer função, inoperante, morto-vivo, vivo-morto. Põe de volta o bocal sobre a ponta de tungstênio. Um corvo rasga o céu estampando o silêncio com um tonitruante som. Ele olha para a janela do seu quarto, vê o céu azul-negro e umas centenas de luzes artificiais. Não vê estrelas. Guarda cuidadosamente a esferográfica, dobra silenciosamente o papel. Não há caos nem colapso. O escritor resigna-se. O escritor está calmo. O escritor puxa o lençol xadrez, pega o travesseiro no guarda-roupa. A hora é já alongada. Não há caos nem colapso. Desliga a luz, o escritor. Deita-se. Não ora. Avoluma-se algum som de silêncio. O escritor está dormindo, como um anjo.
| Desde 2007 | Por Germano V. Xavier | Em memória de Milton de Oliveira Cardoso Júnior | + de 2.200 textos publicados |
domingo, 27 de fevereiro de 2011
Não há caos nem colapso
O escritor, nem bem terminou de ler a matéria, prostrou-se pateticamente diante da folha em branco. No fundo ele ainda nem imaginava o que iria escrever, apenas desejava. Era um desejo misterioso, como quando nos arrefecemos diante de um susto apenas susto ou de um vulto apenas vulto. O escritor, pensativo, sem pensamentos. Uma pequena gota d'água desce pacientemente da borda do copo que armazena o líquido gelado que daqui a pouco tempo ele beberá aos goles intermitentes. Espanta-se o escritor com o texto que não vem. Ele sabe que não há ninguém em casa além dele próprio e do ser-do-texto. Ele, o escritor, também sabe que há uma vida a existir, suspeita que é também mãe, que pode parir esse filho que teima alimentar-se no útero da vida. Ele sabe ou, ao menos, suspeita. Suspeita que poderá vir a ser condenado por um crime hediondo, caso aborte o rebento. Franze a testa em gesto de repugnância diante de tão acovardado pensar. Transpira, os poros abertos. A temperatura interna aumenta. Lá fora o frio noturno, normalidade. Esboça um desenho surrealista no canto esquerdo superior do papel. Uma bailarina em cima de uma porção de brasas candentes, imaginem a cena. Ele, o escritor, está apelando. Percebe-se sem sorte. Testa a esferográfica de corpo plástico triangular que comprara pela manhã, quando saiu para esticar as pernas. A tinta seca, nova, a ponta virgem, não sai nada. Absolutamente nada é impresso a pelo menos oito minutos. No quarto, o escritor acende a sua esperança opaca, alquebrada, fraquejante. Percebe-se sem o talento de um Dalí, ou mesmo de um Matisse. Não usa cores fortes, tampouco deixa-se influenciar pela cultura popular, mas aprecia, mesmo assim, paisagens oníricas. Não se pode ser Picasso com uma esferográfica de corpo plástico triangular que inicia o despejar de sua carga, agora não mais virginal. Põe o bocal na boca. Com os dentes, fere-o. Pequenas mordidas de desassossego. Surgem deformidades incorrigíveis. O escritor pensa em seus traumas infantes, como quando era obrigado a rezar o terço todinho ao lado da mãe no justo momento em que seu time iniciava um contra-ataque maravilhoso contra um adversário internacional. Pensa na droga da sua vida, o escritor. Pensa na droga que é ele, a começar pelas unhas miúdas. Sempre quis ter unhas grandes, bem cuidadas. Jamais as possuiu. O escritor rói unhas, as suas. O escritor rói unhas da alma, busca, cava, aposta, alegra-se, manifesta desconfiança, depois cinismo, chora, despreza-se, imagina-se adoentado, duvida, sente horror, amaluca-se paulatinamente, intimida-se, suplica, sente saudade, acoberta-se de medo, usurpa, desespera-se diante do nada que é a folha em branco com um esboço surrealista no canto superior esquerdo, aturde-se diante da imprestabilidade que é a sua cabeça, a sua mente, a sua idéia, o seu escrever. O escritor torna-se maníaco de si mesmo. Quer se matar, não pode. Teria de assassinar o texto primeiro, mas o texto nem nasceu. O escritor olha para o birô em madeira negra, bem polida. Pensa no tiro, a arma guardada de seu saudoso avô. Uma carabina, quatro cartuchos novos, os miolos se estatelando nas paredes brancas do quarto. Bebe goles que preenchem a boca numa completude instante. Engole o gole. Logo o vazio, o oco, a não presença, o vago. Vê-se imóvel, sem qualquer função, inoperante, morto-vivo, vivo-morto. Põe de volta o bocal sobre a ponta de tungstênio. Um corvo rasga o céu estampando o silêncio com um tonitruante som. Ele olha para a janela do seu quarto, vê o céu azul-negro e umas centenas de luzes artificiais. Não vê estrelas. Guarda cuidadosamente a esferográfica, dobra silenciosamente o papel. Não há caos nem colapso. O escritor resigna-se. O escritor está calmo. O escritor puxa o lençol xadrez, pega o travesseiro no guarda-roupa. A hora é já alongada. Não há caos nem colapso. Desliga a luz, o escritor. Deita-se. Não ora. Avoluma-se algum som de silêncio. O escritor está dormindo, como um anjo.
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2 comentários:
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"Day 57
by *billyunderscorebwa"
Deviantart
excelente texto. Você escreve belissimo.Parabéns.
Obrigada por seguir meu blog.Seguindo você também.
Lu
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