Por Germano Xavier
Eu era um garoto que devia parecer muito com os outros garotos. Mas eu devia ter lá as minhas diferenças. Eu era um garoto que tinha sempre por perto a figura de meu pai, aquele que a mãe dizia estar "sempre atrasado", para tudo o que fosse. Eu tinha um pai, acompanhado de uma mãe. Depois eu iria perceber que todo aquele querer "estar-junto" tinha lá suas outras razões que não o amor mesmo. O ano, 1970. Época do lançamento do primeiro carro de passeio da Chevrolet, o Opala, considerado por muitos entendidos do assunto o melhor carro já produzido no país das bananas. Nas ruas, um desfile de Gordinis, Galaxies, Chargers, Mavericks, Veraneios, FMK, Simcas, Vemaguetes, entre tantas outras celebridades. Meu pai tinha um Fusquinha azul, um besourinho lindo. A seleção brasileira de futebol estava no México, defendendo a canarinho em busca do Tri. Aqui, o General-Presidente Emílio Garrastazzu Médici dava ordens atrás de ordens. Eu era um garoto que devia parecer muito com os outros garotos, dono de um álbum de figurinhas da seleção da Copa do Mundo que carecia de apenas um nome para ser completamente preenchido, e que não sabia, ainda, o significado da palavra "comunista". Ah, já ia me esquecendo, eu também era um garoto que adorava jogar futebol de botão, mesmo sozinho, na mesa de casa. Um garoto interrompido no meio de mais uma daquelas partidas solitárias, pelo meu pai, levado quase que à força, porém sutilmente, para a casa de meu avô. Pouco tempo depois, ficaria sabendo que eu também era um garoto abandonado num prédio do bairro do Bom Retiro e sem avô. Meu avô tinha morrido poucas horas antes de eu chegar. Encontrei o apartamento onde ele morava completamente vazio de corpo, mas percebia-se sua presença anímica ali, em cada objeto, em cada canto do local. Sentado, esperando à porta. Foi assim que conheci um velho judeu, que me acolheria e me daria abrigo minutos depois. Estranhava aqueles modos, a comida estranhava, o rigor de tudo, perante tudo. Mas eu iria me acostumar. Sofri no início. Sempre esperei por um telefonema dos meus pais, mas o telefone nunca tocava. Eu era um garoto que não entendia o porquê dessa "viagem" feita por meus pais, assim, como quem foge de alguma coisa. Todavia, eu era um garoto esperançoso pelo dia em que eles voltariam, para sempre. Foguetórios, ruas enfeitadas, passeatas intermináveis, alegria, sorrisos estampados e bêbados, sonhos na minha cabeça se alicerçando, meus pais que viajaram sem dizer que dia voltariam, a ditadura, os muros que amanheciam pixados, o céu azul-cinza de São Paulo, os homens passando, a seleção levantando mais uma taça, um grito de "É Campeão!" nas gargantas já ardidas de tanto vociferar. O ano era o de 1970. A maior canarinho de todos os tempos. Eu, um menino que sonhava em ser goleiro, e dos bons. Eu, um garoto sem nada entender. Um garoto agora só com a figura da mãe, desacompanhada do meu pai, chorosa e pálida, dizendo, para mim, do sempre eterno e imutável atraso do meu pai. Atraso eterno, que anos mais tarde eu viria a entender.
Após assistir ao filme "O ano em que meus pais saíram de férias", de Cao Hamburger.
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Crédito da imagem:
"Patria Amada by ~coxao"
Deviantart
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