sábado, 19 de março de 2011

Encontro de um par


Por Germano Xavier

A RELAÇÃO DA FILOSOFIA ANALÍTICA COM A TEOLOGIA MORAL, DE TERENCE KENNEDY.


A teologia moral, desde a Reforma, floresceu principalmente em países latinos e germânicos, onde predominava a perspectiva filosófica continental (tradição do pensamento filosófico vigente na Europa, excluindo-se os países anglo-saxãos). Um esforço inicial de renovação da teologia moral no século XX foi presenciado a partir do diálogo com correntes filosóficas bastante influentes, tais como a fenomenologia (essência dos fenômenos, das coisas), o existencialismo (relação: homem + existência concreta + ações) e o personalismo (elevação humana através da justiça).

A filosofia analítica, por sua vez, surge como uma corrente filosófica principiada em território anglo-saxão, diferenciando-se, portanto, da tradição continental. A partir da segunda metade do século XX, ela começa a ser entendida como parceira de fundamental préstimo nos debates e discursos proferidos pela teologia moral.

Em 1829, com a emancipação católica e o fim do período de perseguição, os católicos (principalmente os padres e seminaristas) puderam dar expressão cultural à sua fé. Era um esboço de um porvir onde a maior ânsia do homem era a liberdade, posto que um período negro da história estava a ser vivenciado. No ambiente cultural deste período, século XIX, era extremamente difícil entender a teologia como um campo de estudo e só a partir do movimento ecumênico e com a secularização de muitas instituições tradicionais é que os católicos passaram a ser tratados nas grandes universidades como quaisquer outros professores e pesquisadores.

Porém, não se deve afirmar que dentro da própria Inglaterra, berço da analise lógica, a aceitação à corrente analítica tenha sido facilmente aceita. Os padres que ensinavam em seminários percebiam na nova teoria do positivismo lógico mais uma corrente filosófica a reduzir as verdades da fé a sentenças sem sentido. Eis aqui um ponto culminante de todo o processo, haja vista que a visão de que o mundo e o homem eram regidos por preceitos éticos cósmicos, procedentes muitas vezes de uma unidade divina, começa a ser questionada. Joseph Owens pensava que a análise lógica havia escolhido um ponto de partida falso para a filosofia, pois ela negava implicitamente o contato do pensamento racional com o real através da experiência sensível, fator desencadeador de inumeráveis discussões.

A filosofia anglo-saxã sofreu muito preconceito, e hoje é entendida como um método ou como um meio de tratar problemas filosóficos, e não de produzir respostas aos imbróglios da filosofia, estruturando-se, para isto, principalmente a partir das contribuições de Bertrand Russel, George E. Moore, Ludwig Wittgenstein e outros. Conquanto, seu propósito principal é apenas terapêutico, isto é, curar nossos pensamentos, expressos na lógica e na linguagem, dos erros que normalmente os afligem.

O encontro da filosofia analítica com a teologia moral pode ser descrito em quatro fases:

1. Um ponto de inflexão na história da filosofia: A relação entre a filosofia analítica e a teologia moral foi estudada por Peter Geach e Elisabeth Anscombe, que formularem teses fundamentais para a apuração do conhecimento dos teólogos acerca dos métodos e concepções da filosofia analítica. Apesar de serem considerados teóricos analíticos, ambos destacaram a importância da filosofia moral para a constituição da identidade filosófica européia. O passado do saber, aqui, jamais foi desprezado por completo, servindo sempre como alicerce para o progresso dos estudos. Ao cruzarem os pensamentos das duas correntes, aparentemente contraditórias, sem enfatizar uma em detrimento da outra ou fazer julgamentos de ordem comparativa, Geach e Anscombe tiveram o reconhecimento de estudiosos de ambas as partes.

Eles mostraram que existe um modo católico de fazer filosofia, que é inteiramente compatível com as leis da razão, com as normas da filosofia e com as exigências de rigor da lógica e que é, de forma descompromissada, leal às teses da revelação divina e aos ensinamentos da Igreja Católica – outra vez o passado do saber auxiliando na geração do novo. Renovaram o pensamento católico e mostraram que a ortodoxia católica é parte fundamental do humanismo europeu integral. Elisabeth Anscombe, em seu artigo “Modern moral philosophy”, de 1958, afirmou que a ética britânica havia se enveredado por um caminho falso, pois faltava uma psicologia moral – elemento integrante do pensar analítico-filosófico - como base para a teoria e a prática das virtudes e que palavras como “dever” e “obrigação” haviam perdido completamente seus sentidos desde que elas foram arrancadas do contexto próprio em que Deus como legislador da ação humana fundamentava a obrigação moral. Ou seja, as regras regidas pela religiosidade e a figura onipresente e julgadora de Deus, já não continham as mudanças de pensamento e operatividade do mundo moderno - seria um sinal da tão sonhada liberdade humana?

Como exemplo a ser observado, a partir do pensamento utilitarista (qualificação dos prazeres) de Sidgwick, a execução de indivíduos considerados criminosos era permitida. O assassinato de uma pessoa reconhecidamente inocente, caso fossem encontradas boas razões para esta ação, seria tida como uma atitude natural. Anscombe viu que esta teoria conflitava-se com as fontes tradicionais da moralidade, a saber objeto, intenção e circunstância, de tal forma que não seria mais possível descrever nenhuma categoria do ato humano como intrinsecamente mal. O indivíduo deveria ter sua ação analisada e julgada profundamente antes de ser “levianamente” considerado culpado.

As considerações de Peter Sidgwick reforçavam as concepções de Germain Grisez sobre o assunto (Germain afirmava que o ser humano agia em prol de alcançar os “bens básicos” para a sua vivência). Sidgwick não só destruiu os erros da teoria moral, com seu caráter positivo e propositivo, como a partir de suas considerações fez renascer a ética das virtudes.

Aprofundando as idéias de Sidgwick, Alasdair MacIntyre mostrou a idéia de que a crise da ética surgiu a partir da dissolução da concepção teleológica de Aristóteles, segundo a qual a vida humana tem uma finalidade unitária.

Peter Geach destacou as condições espirituais de relacionamento com Deus, que em última instancia torna a vida moral possível. Seu livro The Virtues é exemplo de um tipo de obra buscando superar o confinamento da ética moderna, condenada à escolha entre kantianismo e utilitarismo.

2. A guerra cultural entre filosofia analítica e a teologia moral: Eric D’Arcy ficou conhecido pelo seu livro “Conscience and its right to freedom”, uma referência fundamental para a discussão sobre a liberdade religiosa no Vaticano II. Ele retomou o pensamento de que “o bem deve ser feito”, e levantou a questão sobre se os primeiros princípios morais eram mesmo “princípios universais ou preceitos primários”. D’Arcy reconheceu que os primeiros princípios da lei natural, tais como expostos por Santo Tomás, não poderiam atuar como a premissa maior para um silogismo. Por conseguinte, as normas individuais da moralidade, tais como foram pensadas tradicionalmente, não podem ser derivadas destes princípios primeiros. Darcy concluiu que estes princípios emergem da reflexão sobre as experiências, mas acrescenta que a lógica entre eles e as normas individuais não foram suficientemente explicitada pela tradição da Igreja. D’Arcy começa a tocar num ponto também conflituoso para a própria Filosofia analítica, sempre ocupada com a fundamentação da moralidade: “Onde se dava a relação entre a ética do mundo e a ética dos homens?”.

Sua tese é a de que a teoria moral católica dificilmente misturava-se à cultura anglo-saxã e muito menos à filosofia britânica, tal como se sabe historicamente. A renovação da teologia moral ocorreu principalmente nos termos predominantes na filosofia de origem franco-germânica, tais como as correntes de pensamento que derivam de Kant, Hegel e Kierkegaard até a fenomenologia, o existencialismo e depois o estruturalismo. Foi a descoberta deste método filosófico revolucionário, cuja tarefa principal é análise lógica do significado, que constituiu a assim chamada filosofia analítica.

Darcy percebeu três conseqüências negativas para a teologia moral: 1- Diferença quanto ao estilo - os filósofos continentais eram mais inclinados à edificação e tinham o gosto pela abstração em seus escritos. Já os anglo-saxãos eram mais diretos, concretos e pragmáticos; 2- Darcy lamenta que poucos pensadores houvessem refletido sobre a moral; 3- Embora os teólogos moralistas tivessem aprendido a usar a psicologia moderna e sociologia, o seu pensamento ainda se ressentia do desconhecimento de estruturas lógico-formais, no entanto promoveram mais avanço na lógica nos últimos cem anos do que em todo o tempo decorrido desde Aristóteles até então.

Ao passo que o tempo avança, e com ele a visualização de um nascedouro intelectual cada vez mais participante e bilateral, percebe-se uma forte ruptura paradigmática no entorno das ciências. O antes visto com certo desdém “diálogo estrutural” entre doutrinas, estratégias e/ou correntes de pensamento, começa a sofrer um revertério, permitindo ao homem, agora mais livre e equilibrado, antever a possibilidade de convívio entre duas ou mais esferas de conhecimento. É o momento onde a filosofia analítica ganha créditos quase que totais e começa a ser observada como um instrumento basal perante os teólogos moralistas.

• Fazendo-se rememorar épocas mais distantes, como o Humanismo e o Renascimento, entra a figura do homem em voga novamente, homem esse possuidor da força de avanço ou freio ante suas ações. Mantidos os valores primordiais, sejam de ordem coletiva ou individual, torna a ser vigente a introdução dualista-integral do modus operandi científico em diversos países. Como reflexo dessa nova prática, universidades e outras instituições legitimadoras e construtoras do saber, promoveram verdadeiro levante ideológico quando se dispuseram a discutir e levar à tona a análise como elemento construtor de um arcabouço ideário mais sólido e presente.

3. Tentativa de aproximação e assimilação: Nesta fase, o crescimento da importância da ação humana, não derivada e regida apenas por Deus começa a se consolidar. O efeito desta nova mentalidade pode ser visto no modo como os padres passaram a ser educados nos países de língua inglesa, a saber, na construção de teorias que permitiam uma ligação entre as duas esferas de saber e suas diferenças conceituais.

Um dos principais investigadores dessa questão foi Germain Grisez, que reinterpretou a doutrina da lei natural de Santo Tomás sobre a distinção entre o ser e o dever, resultando daí uma teoria de dois eixos: o primeiro é a afirmação de que existem bens primários básicos que motivam a ação humana e cuja realização é parte constitutiva da noção de completude da vida humana; o segundo aborda os modos de responsabilidade, elementos constitutivos da obrigação moral que rege os atos humanos em direção a esses bens. Grisez tendeu a defender a tese de que a doutrina de Santo Tomás apresentava-se de algum modo deficiente e que este não foi, de fato, capaz de fundamentar normas morais a partir dos princípios absolutos, pois lhe faltavam os instrumentos da análise lógica da linguagem.

A introdução da filosofia analítica na formação dos teólogos moralistas de todo o mundo deve-se a Bruno Schüller. Ele retomou a distinção entre ética deontológica e ética teleológica ao afirmar que na casuística, alguém descobre que uma norma tida como absoluta, que não permite nenhuma exceção, apresenta de fato exceções quando aplicada em determinadas situações ou quando determinadas conseqüências se tornam evidentes.

A filosofia analítica provou ser um potente antídoto contra erros na teoria moral e na argumentação prática, além de ser um instrumento poderoso e indispensável para a construção de teorias no interior da cultura anglo-saxã, e com um efeito devastador na remoção de erros e ambigüidades teóricas.

4. A emergência da teoria do realismo moral: A relação entre a filosofia analítica e a teologia moral começa a se consolidar no momento em que a primeira concede novas perspectivas de pensamento à última. Como exemplo maior, temos a discussão acerca da distinção entre ética e moralidade. Os analíticos juntamente com kantianos e utilitaristas têm a tendência de definir moralidade em termos de obrigação, de tal forma que a moralidade pode ser tomada como um momento da ética. Atos de supererrogação e a existência heróica de uma vida verdadeiramente virtuosa não devem contar mais como parte da moral, ou seja, uma moral acerca do bem. Bernard Williams é contra esta perspectiva, e acredita que a moralidade é inerente e está inserida integralmente em todos os aspectos de nossa humanidade. Esta mudança é parte da grande revolução no pensamento analítico, principalmente o reconhecimento por parte de analíticos de que o método da precisão lógica que eles utilizavam conduz não somente a uma purificação da metafísica, da antropologia ou da ética, mas pode levar também a novos e originais resultados no interior destas disciplinas. Trata-se da emergência do realismo real, que considera as entidades morais dotadas de carga ontológica e realidade tanto quanto outras entidades já estudadas tradicionalmente pela filosofia.

Outro campo que se abriu para a teologia moral foi o “tomismo analítico”. John Haldane afirma que o tomismo analítico não tem a intenção de se apropriar de Santo Tomás para assentar um conjunto particular de doutrinas. Procura desenvolver métodos e idéias da filosofia do século XX, dominante no mundo anglo-saxão, em conexão com o amplo espectro de idéias apresentadas e desenvolvidas após Santo Tomás. Porém surge uma questão delicada sobre essa filosofia: “Pretende o tomismo analítico ser uma abordagem metodológica de Santo Tomás ou uma reinterpretação do tomismo à luz das idéias mais recentes no âmbito da filosofia analítica?”.

Com todo este retrospecto e questionamentos, que se fizeram e se fazem necessários para a ampliação do conhecimento sobre as duas correntes filosóficas, não há dúvidas de que a filosofia analítica provocou uma revitalização vigorosa nas discussões sobre o método e a forma da teologia moral na Europa e posteriormente em todo o mundo. O que anseiam verdadeiramente os analíticos é talvez o surgimento de uma nova escola em teologia moral, capaz de reconhecer mais ainda a importância dos estudos em analise, lógica e “terapia do pensamento”, a fim de os permitirem entrar mais ativamente no cenário cognoscitivo e tradicional da Filosofia.

Um comentário:

Germano Viana Xavier disse...

Crédito da imagem:

"Moral Decay by *Waxmanjack"
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