segunda-feira, 15 de abril de 2013

O fim no escuro


Por Germano Xavier

Mudei o aparelho de telefone de seu lugar de origem. Mas isso foi na noite passada. Já marca o meu relógio a data de 18 de fevereiro. Este ano está indo que nem um supersônico norte-americano. Nuvens cortadas ao meio. Penso que se eu tocar o chão com o meu pé esquerdo, talvez parte de toda a minha programação para hoje acabará não se realizando da maneira que quero. Por isso não me arrisco e destorço meu corpo ainda grudado na cama e ponho meu pé direito a tocar o piso branco do meu quarto. Você ainda não sabe do que planejei para hoje, mas, certamente, logo irá entender o que está acontecendo. Vou rápido escovar os meus dentes e banhar-me – estou longe de ser arquétipo do vagabundo contemporâneo, cara de ovelha-negra da família ou personagem do estouvado Buko. Por este simples dito, agora já me conheces mais do que quase nada. Adianto meu prazer em estar aqui ao seu lado. Cotonetes, desodorante e aquela meia de guerra. Pronto. Podemos continuar. O relógio aponta e me diz que já está na hora. Qualquer atraso seria um verdadeiro desperdício. Hoje quero revolucionar uma alma. Alguém certa vez me disse que “um outro” e “qualquer alguém” deveria lançar um manifesto apregoando que a delicadeza não é mera questão ética, mas também estética. Talvez esse seja o meu maior plano para hoje: tornar “um outro” ou um “qualquer alguém” um tanto mais delicado. O que vier além disso será consequência do meu trabalho. Você, alguma vez em sua vida, já se perguntou acerca do seu grau de delicadeza? Você é um ser humano delicado, ou não? Acha que ser delicado é coisa para quem usa blusa cor de rosa? Você deve estar achando que trabalho num ramo esquisito do mercado moderno de profissões. Mas não se espante, nem tome nada ainda como alusão diretiva à pessoa que sou ou ao que faço ultimamente. Tome-me apenas como este simples homem que está com você agora. Fica chato você não possuir um nome nessa estória. Por isso vou te chamar de Arthur – creio ser um bom nome, lembra aquele rei e seus cavaleiros e aquela mesa redonda. A intenção aqui, assim como na lenda, é a aproximação das nossas confidências e o aumento da eficácia de nossos diálogos. Eu vou precisar de você a qualquer instante e se ficarmos nesse clima amistoso durante todo o desenrolar dessa narrativa, não tenderemos ao sucesso. Como eu ia dizendo, vou mudar uma alma hoje. Retirá-la do seu posto, cobri-la com uma nova roupagem, adorná-la com os mais puros acessórios. Mas tenho um sério problema: eu ainda não sei como farei tudo isso. Por isso preciso tanto de sua ajuda. E pôs as mãos sobre a testa o menino de vermelho. Olhou frigidamente para a parede que estava de branco, cor do seu instante. Depois pousou as mãos na altura do abdômen, entrecruzadas, como fazem com os vivos nos mortos no arrumar do féretro. Havia algo estranho naquela hora. Talvez o ar marcado pelo doutrinamento do cômodo fechado. Talvez a sensação de estranhamento natural perante as coisas. O menino de vermelho sustenta-se em nada querer. Retrocesso. Para ele, não. Avanço. Imaginou-se a salvo das derrotas mais comuns, porque era um ser individual ao extremo. A coletividade sempre o emperrara. Consciência plena no atraso que era considerar-se moderno e multidoado. Ele estava além de qualquer suspeita. Pensou na antropologia cega e na de Latour, e ouviu um vagido depois. Impugnado com tudo ao seu redor, homem estranho, ventilador, dicionário, fones de ouvido, conselhos, pedidos, esperou. O menino continua imaginando. O que seria dele ali, parado, ouvindo e imaginando, sem a imaginação? Franziu a testa, roeu um pouco as unhas, deu pequenos trotes com a perna esquerda que estava um tanto flexionada, olhou para o firmamento, refletiu. Uma peça mística de algum romance chato. Toda a poesia de um autor controverso. Os melhores contos de um burguês em parafuso. A obra-prima de uma conversa sobre bidês e exportações. Nada nele sobreviveria ao minuto seguinte. O menino tinha a intensa capacidade de destruir, o que não é para todos. Venha ver o pôr-do-sol não era frase a ele direcionada. Ouviu novamente a voz estranha que pedia uma espécie de socorro. Uma voz que dizia querer transformar uma alma e que necessitava de ajuda. O menino que vestia vermelho fez um gesto ligeiro, típico de quem sente meio temor e meio susto, e alongou as vistas para o corredor. Ele viu. Mas, nesse mesmo instante, a lâmpada espocou, deixando o restante da estória no escuro.

Nenhum comentário: