quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Em memória de mim



Por Germano Xavier

"Terá sido frio seu súbito abraço?"
(Caio Fernando Abreu, em Pequenas Epifanias)


Um primeiro aviso ao leitor: não quero estar vivo após escrever o ponto final desse texto. Principalmente não quero me sentir vivo. Ultimamente a vida me tem surgido um tanto carregada, tatuagem de pedra encravada nas costas. É certo que há dias em que a desgraça se instala e fica, como na maioria dos finais de semana. Finais de semana não foram feitos para pessoas como eu, definitivamente. Hoje é um sábado, amanhã será um domingo. Festanças, comemorações, alívios, gente andando pela orla com seus cachorros, papagaios, gatos, cavalos, gnus e rinocerontes de estimação - por que não rinocerontes? Mulheres e homens bebendo, papeando, tagarelando, resenhando suas mais inclassificáveis trivialidades. Crianças nos parques gastando suas infâncias. Velhinhos no dominó e no gamão esperando Godot chegar e eu, um ser estranho, sentindo tudo aqui na clausura do meu quarto razoável. Estou pensando em minha imortalidade, enquanto os outros não. Os outros nem ligam, não se esforçam para morrer brandamente, como sempre faço. Estou pensando na minha mortalidade, enquanto os outros não. Os outros apenas vão, e chamam isso de "ir apenas" de liberdade - estarão certos? Estou pensando em coisas que são desprezíveis aos outros - pelo menos agora, na parte pulsante desta coisa a que intitularam "vida". Estou pensando - e penando também - em assuntos como a morte, como a vida, como a minha mitologia, como a mitologia do mundo, como a desgraça que é ser assim, sentir dor por tudo, sentir dor por nada. Não, não é que tenho gosto pela maneira como vejo o mundo, as pessoas e as coisas. Não é isso. Não sei até quando sou feliz por assim agir nem triste, sinceramente não sei. Porém, é quando dias assim como esses me abraçam o corpo sem piedade alguma que sinto ainda não ter sido capaz de obter a permissão para entrar de vez no paraíso. E não sei se é deveras este o destino permanente a que aspiro para o depois daqui. Apenas estou pensando em minha possibilidade de morrer, em minha expressiva potencialidade de deixar de existir, de ir, virar pó, nada, ar, de desaparecer para todo o sempre. Só isso que estou a fazer agora. Ao passo que não consigo ignorar a morte que caminha comigo - posto que é ela a própria alma da sombra que me projeta maior ou menor dependendo do ângulo de incidência da luz -, assino minha qualidade de ser essencialmente mortal. Borges me diz que "ser imortal é coisa sem importância", e aceito. Minha imortalidade estaria em não me preocupar com ela, e com nada parecido - o que é, de fato, quase impossível. A afirmação por algo, de ser alguma coisa, é a própria constatação de que não se é ou não se pertence. Ninguém é deus ou será apenas se auto-afirmando como um. E depois disso, novamente penso nas pessoas com seus rinocerontes de estimação, nas mulheres tagarelando pieguices, nos velhinhos jogando a tarde sobre um tabuleiro quadriculado, nas crianças brincando sem economias. E penso em mim, mais uma vez. E mais uma vez penso no que será de mim após o ponto que finalizará o texto que agora redijo. Estarei morto mesmo, como que pronto para um funeral ligeiro e sem pompas? Continuarei vivo e mudarei alguns conceitos acerca das minhas imaterialidades tão presentes e indefiníveis? O que será de mim após meu pensamento? Mas, Borges, eu também não pretendo ser tão débil a ponto de morrer por qualquer coisa. Por favor, não me entenda mal. Eis o meu ponto final.

2 comentários:

Germano Viana Xavier disse...

Crédito da imagem:

"Noises
by *YourForgiveness"
Deviantart

Caca disse...

Você me transportou lá para Drummond em Sentimento do Mundo:

Os Ombros Suportam o Mundo
Carlos Drummond de Andrade

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.


Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.


Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Abraços. Paz e bem.