segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Livro sob o camafeu



Por Germano Xavier

Para Lúcia Bettencourt

Ninguém suspeita de mais nada. Apesar de a considerarem uma fugitiva perigosa, não conseguem se livrar da pecha que o ofício de secretária traz à mente dos mais ingênuos. O que todos pensam, deveras, é que ela jamais seria capaz de produzir tanto mal. Não sabem onde ela se encontra no exato momento, se aqui mesmo caminhando em uma das largas avenidas de Buenos Aires, ou se em outro país disfarçada com uma peruca ruiva e um belo vestido italiano. Ela, justamente ela, a secretária de Borges, a mais nova portenha acusada de plágio.

Mas não é para menos todo o rebuliço que o respectivo fato provocou. Um caso muito peculiar, realmente. Atravessar meses ao lado de Borges, do velho e já quase exausto Jorge Luís Acevedo, trabalhar como sua secretária pessoal, ouvir do próprio monstro sagrado da literatura os ditames de sua arte labiríntica, dia após dia, encarregar-se de copiar as frases proferidas pelo já quase cego escritor e, não obstante, aproveitar-se da sorte para mudar o teor dos textos que ouvia e copiava e, no fim de tudo, terminar por publicar um livro com a sua própria assinatura, como se ela fosse a autora daqueles contos fantásticos, daqueles poemas maravilhosos. Ah!, isso indubitavelmente é um crime dos mais bárbaros.

Sentia-me bem agora, já distanciada da massacrante rotina de viver. Deste outro lado, no post-mortem, conseguia observar tudo com mais clareza. Foram poucos os momentos em que logrei do tempo de que eu realmente necessitava, e tal desprazer me aconteceu durante toda a vida. Daqui de onde estou, vejo na sala o meu filho Borges, sentado no velho sofá empunhando sua bengala de cedro. Aparentemente cansado, meu filho segue com o coração dos ouvidos aberto, em pulso normal, tacitamente escutando o que o escriba tinha dentro da boca naquela bendita hora.

- Olha, Borges, ninguém sabe do paradeiro de sua secretária. Já entrei em contato com muita gente, mas ninguém possui informações.

- Não se preocupe, meu filho – falou o lobo argentino, cobrindo de suavidade as arestas das palavras.

- Juntamente com o seu editor, estou providenciando mais pessoas para a captura daquela falsária.

- Não carece mais, meu bom amigo, deixa ela.

Isto resumia tudo – ou quase tudo. Borges não estava preocupado com o desfecho da história. Renomado, dono de um lugar expressivo no cânone literário mundial, o argentino deixava emanar de seus gestos apenas um parcimonioso sentimento de resignação, como que sabedor de que a única coisa que importaria a ele no auge dos seus oitenta anos de idade era apenas a figuração realista da morte, ou o espectro real do movimento último advindo do poder de sua memória, esta espécie de ave carnívora que dele se aproximava contundentemente.

Depois de escutar o último dizer do mestre, vi o escriba sair cabisbaixo pela porta da cozinha. Meu filho continuou sentado por cerca de quatro ou cinco minutos, talvez refletindo sobre o sucedido, ou talvez desejando que a foice lhe chegasse rápida com o golpe laminado final, bem na altura do seu pescoço, fazendo-lhe respirar aliviado. Devia estar pensando na situação constrangedora em que a sua secretária havia se metido, agora uma moça bonita e sem sossego, incapaz de gozar de uma paz mínima ainda em seus iniciados anos de juventude, procurada por todos, exilada do mundo.

Com movimentos suaves, meu filho mexeu a cabeça para a esquerda. Fitou ao longe o quarto, as vistas despronunciadas e viu, como num quadro onde o pintor utiliza-se da técnica do sfumatto, a embaçada forma do camafeu que me pertenceu e que se encontrava no mesmo lugar onde deixei antes de partir para o outro mundo, encostado ao velho guarda-roupa, sobre a penteadeira na alcova que foi minha por gerações inteiras. Presenciei toda a cena. Com dificuldade, meu filho caminhou até o cômodo. Ao passo que ia se aproximando do camafeu, um objeto ia tomando corpo em cima do móvel antigo. Mais alguns pesados e lentos passos e o grande tomo ia ganhando proporções reais. Era um livro. Neste momento, imaginei que ele já conseguia, só de ver o borrão nas vistas cansadas, sentir até o peso e suas exatas dimensões, tamanha era a sua vivência com tal artefato.

Não sei como a idéia de ele saber o que estava em sua frente me era assim tão facilmente verificável, agora já segurando na palma de uma de suas mãos o livro, ou o que o fizera ir até o quarto, direcionar-se exclusivamente para o canto onde estava o camafeu, decidido a averiguar aquele objeto com os próprios sensores do corpo e da alma. Muito estranho achei porque não me lembro de ter deixado um livro sobre o móvel nas vésperas de minha morte. Ainda mais pelo fato de, apesar de Borges ter um mundo de livros e viver a literatura intensamente, eu não gostar de me arriscar profundamente em romances ou coisas do gênero.

Vi Borges encostar o rosto no livro, no intuito de ler o que havia escrito sobre a brochura, quando numa explosão interna de sentimentos, misto de surpresa e torpor tanto para mim quanto para ele, a voz do meu filho ecoou lúcida e potente de dentro do quarto:

- Parece-me fácil viver sem ódio, coisa que nunca senti, mas viver sem amor acho impossível. Sabes bem o que acabara de fazer?

- Perdoe-me, senhor – disse a secretária, surgindo em rastejo serpentino de debaixo da cama.

- Eu não falo de vingança nem de perdão, o esquecimento é a única vingança e o único perdão.

- Mas foi mesmo o senhor, meu amo, que uma vez me dissera que acreditar no amor é ter fé num deus falível.

- Todos os caminhos levam à morte. Perca-se.

Algum sentimento estranho se aventurou dentro do meu ser. Daqui de onde estou não posso ver nada. Apenas ouço o diálogo. A secretária do meu filho não está em outro lugar senão dentro de casa. Nunca estivera em outro lugar. A falsária tivera se escondido embaixo da minha velha cama. Deus meu!

Sem conseguir olhar diretamente nos olhos de Borges, a secretária lhe estendeu uma das mãos:

- Vide, meu senhor, esta é a mão que às vezes tocava a tua cabeleira quando se sentava naquele sofá e começava a ditar-me as tuas frases.

- A velha mão segue traçando versos para o esquecimento – disse o escritor, com voz rouca e pesarosa. – Por que fizestes isto?

- Calam-se as cordas. A música sabia o que eu sinto.

Mas o silêncio é viscoso demais e poucos são os que o suportam. O silêncio é profundo, e de em tantas profundezas se enveredar, como numa patafísica ironia o silêncio alguma coisa diz, numa alguma hora decisiva.

De repente, nada mais se fez ouvir. Do mesmo modo como deu entrada no quarto, Borges dele saiu. Lançando ao solo passos piedosos, meu filho chegou à porta que dava para a cozinha. Olhou para o chaveiro próximo à janela e o percebeu incompleto. Vendo o escriba sentado em um dos tamboretes, com o telefone encostado em uma das orelhas, interrogou:

- Alguma notícia dela?

- Não, senhor. Nada ainda.

Borges voltou-se para a sala em puro silêncio, refletindo sobre o motivo de o quarto da mãe estar ali aberto naquela hora, quando o normal é estar cerrado e sua chave imiscuída aos outros molhos e chaveiros na cozinha. Virou o rosto na direção do quarto e não viu mais a sombra do objeto em cima da penteadeira. Para dentro de si mesmo, sussurrou um pensamento:

- Obscuramente livros, lâminas, chaves seguem minha sorte. No deserto acontece a aurora. Alguém o sabe. A vasta noite não é agora outra coisa senão fragrância. Disseram-me algo a tarde e a montanha. Já não me lembro mais.

2 comentários:

Germano Viana Xavier disse...

Crédito da imagem:

"Camafeu II
by ~francisne"
Deviantart

Marinha disse...

Que denso e belo! Senti certa nostalgia e vontade de olhar para dentro, sabe?
Bjo e uma semana de paz.