domingo, 23 de janeiro de 2011

Pássaros no panorama



Por Germano Xavier

Eu, um ghost writer.
Para a Srta. A.
E dela para o Ted.

Ela era uma menina alva, sei lá, parecia. Adorava um país frio que falava inglês. Talvez sonhasse em um dia morar nele. Lugar longe. Vivia dizendo que de palavras não brotariam flores, que a natureza nos tinha como sedentos inúteis. Seu rosto era lindo, dono de uma cor rósea. Um dia, caminhando pela praça, encontrei-a sentada num banco, com um livro grosso nas mãos. Eu pedi licença e fui sentando. Ela me olhou rapidamente entre o sol no horizonte e o livro que segurava e disse que nós, humanos, não acrescentamos nada à vida, a não ser tirar dela o que não temos: a paz que paira sobre as coisas simples.

Para ela, pude inferir depois de certo tempo, em um copo preparamos lucidez enquanto as árvores recebem canções. Embriagamo-nos de prazeres por acreditarmos que neles estão todas as satisfações da alma e acertamos. As satisfações, assim como os desejos, foram feitos para se consumirem em si mesmos e morrerem no instante claro após sua consumação. Eu nem acreditava muito no dia, mas ela, assim, emprestando sua beleza às flores da pequena praça, deixava-me crente de que tudo era possível. O mundo, a humanidade, a paz, o fim das coisas ruins, mesmo que o tom de sua voz quase sempre fosse o da melancolia.

Entre uma página e outra que ia lendo, filosofava belissimamente, como em: “Bebemos poemas, quebramos xícaras em nome da arte, pintamos os olhos de vaidade para cegos alcançarmos mais rápido toda a sorte de ilusão. Sim, amamos as mentiras, são elas que nos tornam fortes, invencíveis, mais do que Ricardo III diante da amada.” Era um espetáculo ouvi-la, tinha o poder de adormecer as libélulas suas frases desconcertantes, de acalentar os musgos, sua voz doce e sábia pintava borboletas no ar. Num determinado instante, depois de vermos uma criança brincando com outra da mesma idade em nossa frente, tocou meu joelho com uma das mãos e disse, candidamente:

- Os pássaros... Eles sabem de toda a verdade. Eles têm raiz solta e uma leveza profunda. Seus olhos falam e seus corações, de ouvirem passar o vento, valem por tudo. E os meus erros de português valem muito mais, mas batem em mim. Arrancam-me a pele como uma mordida devidamente apaixonada em seu tempo. Como se eu não morresse nunca e eternamente te buscasse em mim, como uma explosão. O fim é a salvação do nosso desespero. Nós precisamos acabar. Acabar é esquecer.

Eu fingia que a entendia, mas por vezes parecia que eu estava diante de uma coisa muito maior. Não saberia descrever, era apenas muito maior que eu. E por isso eu me calava e continuava ouvindo. Ela usava uma capulana lindíssima neste dia – não sei por que razão, já que admirava tanto os fatores europeus -, com a qual fazia uma saia de aparência demasiado rústica. Na parte superior, uma blusa branca conseguia dar contorno aos seios. Uma sandália estilo romana lhe calçavam os pés suaves. E o seu rosto no espelho era sempre o mesmo, ainda que meus olhos mudassem frequentemente.

- Agora que enfim achou o que procurava, por que está triste? – perguntei.
- Porque não era meu.
- Como assim?
- Não era meu. Eu achei, mas já era de outra pessoa.
- E o que você fez? Devolveu?
- Nem cheguei a tocar.
- É guitarra?
- Não.
- É o que?
- Não sei de que nome eu chamo.
- Era importante?
- Sim.
- Como uma coisa pode ser importante para você se nunca a teve?
- É que eu sinto falta do que nunca existiu.
- Hum, entendi. Quer café?
- (...)

Tal qual fez Sherazade diante do rei enlouquecido, ela distraía o tempo com o volume que brotava de sua garganta. Eu, mero espectador, buscava absorver as cores de suas palavras com meus olhos de espanto. Ela não entendia o quanto estava sendo maravilhoso tudo aquilo. Parecíamos contadores de histórias maquinando uma nova mitologia de formas incríveis. Éramos as mensagens dos povos passadas de geração para geração, os valores, a ética, as superstições, os conflitos, os mistérios sagrados e profanos, as religiões e as crenças místicas, simplesmente abauladas em um diálogo puro no meio de uma tarde que, ao modo borgeano, mais parecia um porto.

- Você tá muito chato.
- Os italianos colocam nomes de rios em seus cachorros.
- Você não tem cachorro, você nem gosta deles.
- Muito menos dos italianos.
- Não faz sentido mudar de assunto assim.
- É melhor do que ficar calado.
- Sua voz metálica não disfarça a irritação, tampouco a vontade de ficar quieto.
- Vai ver o silêncio tem alguma utilidade, assim como a tragédia.
- A arte não tem nenhuma.
- A música tem.
- Quem garante?
- Olha, o gelo acabou.
- Mas que gelo? Dá pra completar o raciocínio pelo menos uma vez?
- Do whisky.
- Pensei que fosse o seu.
- Eu não sou gelada.
- É verdade, você é tão quente, hohoho. A Islândia tem inveja. É um husky siberiano numa alma de pássaro.
- O que isso significa?
- Born to be wild.
- Wilde?
- Wild!
- Violento e leve ao mesmo tempo?
- Não tem como.
- Tem sim, se sou um husky-passarim.
- Tá, tem sim. Viu como o seu humor já melhorou?
- Que nada, é sexta à noite e tô sozinho em casa.
- Qual é o problema?
- Tenho algo que não é meu e sonho com lugares que não estão.
- E onde eles estariam?
- Em Mikonos.
- Han?

Eu preciso dizer: ela construía pássaros. Quando falava. Vocês nem imaginam como isso se dava. Mas a paisagem transformava-se inteiramente a partir do momento em que ela pronunciava as coisas. Em um dado momento ela fez uma cachoeira imensamente vertiginosa aparecer ao meu lado, com suas águas chuás-chuás caindo próximas ao meu ouvido. Outra vez me cobriu de estrelas cintilantes. Era tonteante a sensação. Apesar de uma parte de mim não entendê-la bem, outra parte regozijava-se de tanto delírio, deleitando-se em completude.

- É, lá onde a comida me entende melhor do que as pessoas. Coisa fina, sabe. Exausto de gente rústica. Mas não quero falar disso agora, estou com cansaço antecipado de todas as coisas.
- Você está entendiado só porque seu final não chegou ainda. É outro figurino antes de terminar a cena. Não obstante, na hora de seguir estrada, de mãos dadas, como no final naquele filme - e de todas as novelas, você vai continuar assim.
- Assim como?
- Mudando de assunto.
- Tá, mas eu não entendo de vinhos e nem sei do que está falando, agora.
- Estou falando de você, o seu assunto preferido. Aliás, você adora fugir de assuntos favoritos. Vou acabar achando que não são tão queridos assim.
- Eu já disse que não entendo de vinhos, mas acredito.
- Você precisa viver sem precisar das pessoas. Veja o mar, está à sua frente. Entre nele como quem pula cordas ao amanhecer.
- Eu nunca pulei cordas ao amanhecer. Eu não pulo cordas.
- Mas certamente conhece crianças que pulam.
- Eu não conheço crianças que pulam cordas.
- Os deuses tinham razão em eleger a Grécia como lugar ideal para nascerem, mas tinham ainda mais razão em te eleger como o mestre da tristeza. Ter coração de filósofo não é pra qualquer um. Por que não escolhe outra profissão?
- E quem disse que eu sou filósofo?
- Você só faz perguntas e na hora de responder se agarra a devaneios. Filosofia é isso, meu caro.
- Eu gosto de pessoas que falam "meu caro". Na verdade, tenho tara e queda por pessoas educadas em geral.
- Em geral?
- Na verdade, em especial.
- Uma em especial?
- Isso não é redação de vestibular pra você retornar à introdução.
- Tudo bem, Miles Davis fala por nós.
- É, deixa tocar a música, ganhamos mais com isso, ela traduz o que eu não sinto.
- E o que você sente, quem traduz?
- Ninguém. Acho que só o tradutor do google, eu só falo línguas estranhas.
- Há um belo subtexto nessa frase.
- Não tive a intenção.
- Você nunca tem nenhuma, esse é o problema.
- Por que você só fala sobre mim? Não existem outros temas pra você desenvolver? Por que falar sobre a minha vida? Não gosta de viagens? Fale delas. Fale sobre qualquer coisa.
- Você sabe dançar?
- Eu não sei dançar, eu odeio valsas, me dão labirintite e tenho problema de reumatismo.
Fico girando, tonto, a pele dói.
- Quanta frescura! Céus!
- Eu não quero conversar, eu já disse. Se ao menos você fosse bonita e tivesse me apertando contra alguma rua estreita em Alexandria. Mas você é feia e chata. Deixe-me em paz com meus pensamentos, daqui a pouco esqueço deles.
- Mas essa era a minha missão, será que consegui?
- Quanto mais você fala, mais eu lembro.
- Por quê?
- Porque está em todos os lugares.
- Não está não, ninguém é onipresente, só Deus. Está apenas na sua mente. Você é tão infinito assim?
- As pessoas que gostam de gatos tendem a ser bem parecidas com eles.
- Você gosta de gatos?
- Nem tanto.
- Gosta?
- Odeio.
- Realmente é uma pessoa estranha.
- Que nada, sou um normal, apenas, cercado de diferentes.
- Eu também não gosto de filmes imperdíveis, acho todos uma bobagem.
- Depois eu que não faço sentido na conversa.
- Agora me diga, de verdade, qual é a regra para uma verdadeira história de amor?
- Regra?
- Sim, regra, algum problema?
- Nenhum, eu acrescentaria apenas o plural.
- Existem regras?
- Claro que existem. Eu, por exemplo, não me encaixo em nenhuma, por isso sou sozinho, sempre.
- Não é, está.
- Sou, sempre serei, sempre fui.
- Coitadinho do Senhor Sapiência. Sua nostalgia tem hora marcada com a dor nos ombros, sabia?
- A noite nos torna densos.
- Você é denso em qualquer horário, querido.
- Você me disse que eu era leve como um pássaro.
- E o lobo, esqueceu?
- Lobo não, cachorro.
- Ah, dá no mesmo.
- Pássaros não dão no mesmo.
- Não dão no mesmo porque são únicos. Existem coisas que são, você sabe.
- É exatamente o que eu não queria saber. Tenho tanta coisa arquivada na minha memória que meu hipocampo podia simplesmente explodir. Eu não consigo deixar de ser assim, nem poderia ser de outra forma, mas eu insisto.
- Insiste em quê?
- Em não insistir.
- É uma boa oportunidade de insistir sim, mas em coisas bonitas. As primeiras luzes da cidade estão se acendendo. O céu está claro.
- Eu não consigo ver isso às 22h.
- Você não consegue ver isso às 10h.
- Eu não vou insistir nesse papo.
- Porque você não consegue insistir em existir de outra forma.
- E existe outra forma possível de existir?
- Sim...
- Eu acho que não.
- Por que não? Procure uma forma.
- Eu nunca tentei.
- Agora eu sei por que está triste.
- E o que eu faço com isso?
- Escreve.
- Pra quê?
- Escrever é esquecer.
- Mas eu não quero esquecer.
- Então me leia.

5 comentários:

Germano Viana Xavier disse...

Crédito da imagem:

"Passaro
by ~RicardoMadeira"
Deviantart

Anônimo disse...

No final do diálogo as falas do Ted e da moça se confundem, parecem a mesma pessoa (ou apenas dois pássaros voando sobre praças na Grécia).

Uma coisa complicada, de tão simples, por isso precisa ser escrita.

Alicia disse...

Bonito!

Escrever é esquecer, mas tb guardar.

Dauri Batisti disse...

Escrever é esquecer, tem razao Fernando Pessoa, desassossego-me na certeza e pergunto Escrever é esquecer? Escrever pode ser esquecer na luz, pois que esquecer é processo e caminho das sombras, sombras de fim de dia, longas, mas... escrever pode ser esquecimento na luz da manhã, ainda de madrugada, esquecer de lucidas miradas, olhos de demora e encanto. Bem, é impressão minha ou há um sempre novo caderno, estes que se elencam aqui do lado da página?

Um abraço

Leidy disse...

ghost writer?
Raro isso por aqui... (mundo dos blogs)

Beijo