sábado, 5 de fevereiro de 2011

Domingo em Iraquara


Por Germano Xavier

Hoje é sábado em minha cidade, véspera de um domingo como outro qualquer. E hoje beiro a morte, a minha morte. Por onde me encontrassem, facilmente as pessoas poderiam denunciar preocupações ou simplesmente perguntariam sobre o meu estado, se estaria eu passando por algum problema ou se algo teria acontecido comigo. Porque nos olhos dessas pessoas, meus conhecidos e meus desconhecidos, meu rosto aparentava cansaço, sofreguidão e uma tristeza de cachoeiras. Não haveria resposta em mim, e não teria como. Creio que morri um pouco hoje, neste sábado, véspera de um domingo como qualquer outro, um pouco de manhã, um pouco de tarde e, finalmente, um pouco de noite.

Morre-se mais ligeiramente (não sei se este é o termo mais conveniente) nos sábados e nos domingos aqui em Iraquara. Engraçado, também morro agora - um pouco, é certo -, no mesmo instante em que escrevo estas palavras. Morro, mas é um morrer para se viver, um morrer para se prosperar, um findar-se no digno intento de renascer-se. Pois já não tenho mais dúvida, preciso continuar morrendo. Precisarei. É uma questão de sobrevivência, de encontro, de fuga... Necessito da morte para viver, mas morrer em Iraquara, diariamente ou semanalmente - ou simplesmente duas ou três vezes por ano, quando retorno de férias - é sempre melhor, apesar de não ser nada fácil. Há um gosto gostoso em se morrer aqui.

Todavia, enquanto ela não me abraça pelo todo de sua envergadura (a morte), sigo a escrever, em reduzidas linhas, a minha própria morte. E você, que lê, persiste, sempre, a viver do meu ar, do meu sopro, inalando minha existência, que pode ser o espelho da sua ou não ter absolutamente nada a ver com ela, absorvendo com a alma sua também morte vital. Enquanto ela não vem, os meninos e as meninas iraquarenses, ainda sob os cuidados do ocioso fim de tarde do sábado, sem nenhum desses centros integrados de compras ou entretenimento bastante comuns em cidades grandes, esperam já ansiosos pelo domingo de se ir ao Morro do Pai Inácio, pelo feriado de se aguar o corpo nas intermináveis mini-cachoeiras do rio Mucugezinho, pelo final de semana de se fazer trilha pelo Vale do Paty, visitar a aldeia do Capão, limpar a alma na Pratinha ou se aventurar por debaixo do chão, em uma das centenas de grutas espalhadas nos arredores de Iraquara.

E é deveras no sábado que todo o planejamento se dá. Aí os meninos e as meninas iraquarenses ajudam o pai a pôr a churrasqueira portátil no porta-malas do automóvel, a pegar o saco de carvão - muito do qual, infelizmente, produzido com a queima da vegetação nativa da Chapada Diamantina -, a enrolar a esteira de palha do tio, a amarrar os espetos da vizinha, bola, bóia, carne, muita carne, brinquedos, toalhas, com alegria e disposição únicas. Porque foram dias de espera e nada pode dar errado agora. Tudo tem de estar em perfeita ordem, para que o fim de semana não descambe para a desolação total. Começando pelo tempo que, por ser a Chapada uma região geograficamente alta, acostumou-se a pegar desprevenido a quem olha o horizonte claro e limpo de longe do lugar onde se quer aportar, surdinamente levando aquela chuvinha constante e típica justamente para o local escolhido, quando na verdade se esperava um sol abrasador.

Com tudo arrumadinho, sol acordando cedo, lá se vai a família iraquarense, unida como em revoada de estorninhos, a povoar universalmente os infindáveis paraísos naturais gerados no centro da Bahia, preenchendo terras em seu nomadismo quase sagrado, colorindo os topos dos morros e das serras, invadindo a privacidade dos mocós e dos animais albinos donos do centro da terra - ah, Júlio Verne!¹ -, cortando as estradas sinuosas das antigas e rentáveis lavras de pedras preciosas, vai como quem tem consciência da glória que é ter tido a oportunidade de nascer e crescer sobre esta imensa manjedoura feita de pedra, arquitetura divina, rudimentar e misteriosamente imortal, dona das cicatrizes deixadas na memória da vida, e que nunca mais se despedem de nós, meros mortais - bom salientar.


Notas.
1 – Júlio Verne, escritor francês autor de Viagem ao centro da terra.

4 comentários:

Germano Viana Xavier disse...

Crédito da imagem:

"Under the river
by ~leenik"
Deviantart

O que Cintila em Mim disse...

Eu quero morrer num lugar assim e se vc escrevê-lo pra mim a morte será encantada.

CARLA STOPA disse...

Belo ler vc...Grande abraço.

Cíntira's Castle disse...

' Passei por lá e ameii...
De fato um sonho..
Toda a chapada..Um paraíso!
belo texto, como sempre.
Abraço,
:D