domingo, 6 de fevereiro de 2011

Sombras adentro

Por Germano Xavier

Para Ira Buscacio,
pelo seu dia de meio século.


Ao som das matracas, os penitentes cortavam com sangue a noite. O ferro batido em rítmico acorde na madeira instaurava um vigoroso medo dos sons. Um som humilhante, injurioso. Havia um cavernoso vazio no firmamento, impudico. Um céu sem estrelas, vestido com os rumores das nuvens espessas. E um rumor de rio, maldito em espíritos lendosos. Um rio rastejando ao longe, dono de uma vida imperiosa, capaz de mudar ventos. E luas. Era ocasião de devotar o misterioso sacrifício do corpo em respeito aos que vivem, e também aos que morrem, todos enfim. Mormente ao que sangrou pela salvação dos irmãos e da própria vida, sem medir variantes de honestidade ou amor, o Deus criador e seu filho. Olhar aquele rio fervoroso fenecendo ao laço dos passos caminhados, deixar que uma sensação de despedida adentrasse a humana máscara, o estridente rumor dos seres noturnos, sempre impacientes e inadvertidos, baixa-mar quase pelágico. Era um céu propício, evidentemente. Páscoa, morada de um tempo que volteia sempre, fogo secular de símbolos, chicoteado pelo conjunto de mágoas e sofreres dos homens.

Apenas um norte a rumar, o rapaz foi sabendo. Jovem e magro, de alpercatas caseiras denunciando pobreza e coragem, foi com o peito aberto às experimentações de sombra. Triste o caminho, pés passeados ao jugo do balouçar melancólico dos capins, as pegadas descalças de quaisquer amarras impressas no pó solto e pesado da rota negra. Um pobre homem com fome plural, insulano a buscar no mínimo esperançar a visão do refúgio. Já não podia mais sentir as palpitações do rio, nem a sua cor. Estava longe agora, resolvido nas folhagens do atalho, indo na estrada real. Levava consigo um maltratado maneio de sentimentos, mas precisava. Para ele, o destino era ainda mais longo, apesar de a sensação de novidade que lhe tomava a mente permitir-lhe a mais corrente das horas.

Isso aconteceu comigo, numa noite difícil. Venci a rua, solitário. Uma chuva fina regava as luzes parcas que brotavam dos postes. A casa estava normal quando cheguei, com as lâmpadas apagadas e um leve clareado que invadia sem licença a janela basculante da cozinha - e isso já me era normal. Eu fazia questão de entrar vorazmente, fechar a porta de ferro por dentro sem antes apertar o interruptor de luz, para dar a idéia de que medo de nenhuma intensidade fazia residência em meu órgão maior. Meu coração era gelo protegido, incapaz de se derreter. Nesse momento, a mochila que trazia nas costas ocupava-se em conter um peso maior que o normal, como que se instantaneamente algo se fizera posto em seu receptáculo. Sentia as pernas pesarem mais que o peso de rotina, os olhos se demorarem na capacitação da retina para o ver sombreado.

- Sou mais eu – sussurrei. E escutei o silêncio como resposta.

Lá fora, o moço continuava. Pescador de coisas, ia colecionando sensações, gravando na pele a conveniência do estar. Sem dúvida que, por ali andar, já provava que muito de um freio psicológico possível houvera sido destronado dentro de si mesmo. Dedicou todo o tempo do seu dia para o preparo do acontecimento. Desde que o sol abriu os olhos. Era ainda menos de onze horas do dia e ele já havia separado a calça e a blusa alvas, cor oficial do rito. Para a paz? Nem tanto. Foi raro vê-lo com um semblante que aparentasse calma ou serenidade. Estava metido numa feira de instintos, reais ou irreais, mas que mexiam profundamente no equilíbrio de sua carne.

Na sala, depois de já ter assassinado a natureza da noite com o toque premeditado no interruptor, olhei de relance o saco aberto com pães deixados sobre a mesa. A janela quase totalmente aberta deixava um vento quase frio invadir o recinto. Mais perto cheguei e percebi uma pequena panela ainda guardando uma fina quentura em uma de suas extremidades. Tive naquele átimo o pressentimento de que eu estava só, de que ele tinha partido. A sensação de uma liberdade que, não sabendo eu, viria a me sufocar dali a poucos minutos, jogando-me na funesta engenharia dos suplícios, na inquieta mecânica dos devaneios. Foi quando iniciei a subida da escada em espiral.

Lá, com ele, a parte que mais se aproximava do chão, de sua calça branca, agora conhecia o marrom do solo sertanejo. Ele, um errante desbravador antes empoleirado pelo cabisbaixoso gesto do olhado juvenil, pervagava intenso em sua marcha incidental. Os penitentes, como demônios santificados, purificavam-se em dor. Latentes eram os gemidos fabricados no atirar das lâminas dilacerantes, das pontas carnívoras, dos tinos esquartejadores. Via que quanto mais se feriam, mais forte adoravam o Ser necessário. E, repentinamente, trocavam as solas apagadas dos pés pelos registros rubros do líquido interno que lentamente descia por suas costas, a pingar em maneira de renovação da alma.

Eu estou limpo, com um cheiro típico de alfazema, vestido com um conjunto mais leve de dormir. Ao subir a escada, senti meu peso total dobrar de valor. Eu estava começando a desconfiar de minha solidão, ali.

- Deus, eu creio em ti, mas aumentai a minha fé.

Não se ouvia diálogos em todo o trajeto, somente os estalidos dos ferros amarrados nos barbantes empapando molhadamente as cavidades produzidas na epiderme, e as orações num clamor ruidoso, lamentosas. Extirpação dos pecados, o discurso das intranqüilidades, o instante poético das fomes. O rapaz registrou numa câmera a hora em que as alimentadeiras de almas rogaram aos seus suas lamúrias, e o pobre estremeceu. Já no círculo final, a roda pronunciava em vozes vivas todo o júbilo sagrado. Uma comunhão de anjos lutando contra todos os compostos demoníacos do mundo. Deus chamado, o satanás deposto. As almas se exilavam num templo aberto, escondidas das miras periclitantes. Um homem com o dorso banhado em vermelho sacudiu a matraca num alvoroço, e pediu ao Pai:

- Planta aqui teu parecer, que a gente carece... que a gente carece...

Com o controle em uma das mãos, apaguei o senso do real quando olhei o espelho que brilhava estranhamente. Não era meu rosto, meu peito nem qualquer face que soubesse. Nada que me fizesse estar em completa perfeição. Fui levado magicamente para uma outra atmosfera, de ar impedido. Apenas o espelho estava iluminado, por uma luz duvidosa. Não bati em disparada, tampouco fiquei silente. Embaixo, veio o barulho da fechadura se abrindo, o trotar de uns pés macios, baques na escadaria impondo o torque do levantamento, a presença escura de alguma coisa.

E depois uma voz:

- Jamais feche a porta sem se achar inteiro. Eu estou aqui.

Apenas um norte a rumar, o rapaz soube. Olhou para trás, viu o caminho escuro. As vegetações das margens estavam em baile.

2 comentários:

Germano Viana Xavier disse...

Crédito da imagem:

"sombras
by ~djdiablito666"
Deviantart

Marcio Rufino disse...

Germano,
Sua poesia é simplesmente poderosa. Teus detalhes despertam todos os nossos sentidos intensamente. Parabéns virei mais vezes. Já estou te seguindo.
Gostaria de convidá-loa a visitar
http://emaranhadorufiniano.blogspot.com
Comentários serão muito bem vindos.
Abrçs!!!