sábado, 10 de novembro de 2012

Peixes ascendente peixes


Por Germano Xavier

sobre como morrer a dois, numa pausa
diária e sem enganos...


Arapuqueira, você não se aguenta. Peste. Vive dizendo que não é isso, que não quer aquilo, que desouviu o telefone tocar, que o mundo é um moinho mesmo e que acabou e pronto. Acha que vou te ninar toda hora? Não espere a bondade ingênua de mim. Eu sou um péssimo bondoso. Lígia, você chega a ser um teatro completo, daqueles sem atos definíveis! Pelo menos foi isso que deu para entender da boca da astróloga quando fui pedir um auxílio para as forças universais. Você ultimamente anda insuportável. É, essa é a palavra: in-su-por-tá-vel. É que a gente vive em desarmonia... nunca percebeu? Até parece que há uma poeira estelar impedindo que algo simples como um encontro aconteça de bem. Um mero encontro. Casualidade. Mas nem isso. Você só me vem feito bala de canhão. Lígia, você é tão bonita, tão bonita. Cabelos lindos, lindos cabelos. Lígia, você tem tudo que quero numa mulher e é tudo também. Tudo mesmo. Mas você não acredita. Nunca acreditou. Partênope, aonde vais? Você nunca acha engraçado as minhas brincadeiras? Você se acostumou a ir embora, mas hoje você está aqui. Por algum motivo eu ainda consigo te prender. Eu sinto que você gosta. A casa está uma bagunça, eu sei, não precisa me arremedar. Deixe a ironia por conta de sua mãe. É a única casa que posso ter. Aluguel barato, um projeto antigo de moradia feito pela prefeitura da cidade. Mas isso não importa. Nada importa agora, nada. Eu queria que tudo estivesse limpo para quando você chegasse, mas não deu tempo. Olhe o estado da mesa, que horrível! E ontem foi um dia para lá de cansativo. Não sabia que a cidade da matriz da empresa era tão longe. Voltando ao assunto da gente, eu sinceramente espero que você esteja lembrada do que viemos fazer aqui. Você cancelou os cartões? Entregou os livros de volta à biblioteca? Falou com tua mãe sobre a viagem de mentira? Não podemos deixar nenhum vestígio. Como teremos tanta certeza? Não fica sempre algo de nós? Perde-se também. Ganha-se em cada doação. Eu penso nisso. Assim. O teu irmão ligou ontem perguntando se eu estava te achando esquisita nos últimos dias. Ele está desconfiado, que fez pra ele ficar assim? Olha o nosso pacto! Eu disse que não, mentindo, claro. Não quero que nada dê errado conosco. Hoje é o dia mais lindo de nossas vidas. Um dia insuperável. Não sei o que me dá agora... fico rememorando contos que lia durante minha infância. Eu acho tudo muito bom e tudo muito ruim ao mesmo tempo. Aquela coisa de felizes para sempre nunca me convenceu. Eu jamais pensei que este tipo de fim podia existir mesmo, afinal... tudo é tão estranho aqui. Mas somos dois felizardos porque suspeitamos de tudo ainda cedamente. Temos tempo de sobra, algumas horas, digo. Mas é um tempo confortável. Tempo de relógio silencioso. Vamos nos socorrer desse naufrágio que já passa dos vinte anos. Estamos marcados, vamos sobreviver. Já pensou em como será nossa última noite? Não?! Normal. Você nunca foi de planejar as coisas. Gosta mesmo é do improviso. Você não mudou nada desde que te conheci. Eu comprei vinho, do que você gosta. Eu o acho doce demais, mas vou tomar mesmo assim. Tudo tem de estar em comunhão hoje. Venha cá, amor, venha ver a lua! Foi nessa varanda que aconteceu nosso primeiro beijo, lembra? Você estava com uma blusa azul tomara-que-caia. Lembro de tudo como se fosse hoje. E cá estamos nós dois novamente, unidos pela bebida dos deuses, olhando a bola branca de São Jorge que flutua no firmamento. Será que alguém está nos olhando da lua neste instante, Lígia? Quê? Você trouxe queijo? Hummm. Que delícia! Corta ele em pedacinhos e volta. Não demora. Fico com saudade. Você já escolheu o melhor lugar? Pense rápido. Eu acho que no quarto fica muito manjado. Que me diz? Podia ser aqui na varanda. Ótimo! Então será aqui. Não pegue no sono, vamos direto. Vamos como num tubo cheio de água, deslizando. Vamos bêbados, embriagados de amor. Qual foi a última palavra que você disse a seu pai? O que ele falou? Você pegou a avenida do centro ou veio por fora? Táxi? E perder as paisagens da orla? Não é possível. Você é insensível mesmo. Trouxe quantos? Olha só, são coloridos. Eu vou tomar o laranja. Você engole o verde. É nestas horas que a vida se mostra mais bonita. A vida e seu recheio. Vou contar um, dois, três. Vamos finalmente encontrar a felicidade. E quero ver se há alguém lá na lua. É um! É dois. É três, e já... Lígia, você está aí?

Um comentário:

Germano Viana Xavier disse...

Crédito da imagem:

"Menino_by_joaofred"
Deviantart