Por Germano Xavier
Tempo III - Na ladeira da Maria
Há lugares de predileção em cada cidade onde gastamos parte da nossa vida. Locais que conseguem nos guardar e ao mesmo tempo proteger a fragilidade de um passado essencialmente vulnerável às conquistas do porvir, nem que apenas opere isso através de uma imagem ou de uma lembrança. Cantinhos prisioneiros de um tempo que se eterniza em nossas memórias. E como o cronista que escreve neste exato instante ainda não aprendeu a esconder suas alegrias e tristezas quando na atividade criativa, recordo-me agora de uma rua iraquarense simplesmente fantástica durante toda a minha infância. Uma rua que não era uma rua qualquer, feita de obviedades ou rua sem saída. Mas a rua onde diariamente eu podia praticar, em tentativas infindáveis, o meu intenso e inesgotável sonho de voar.
Em meados dos anos 90 do século XX, quando eu contava meus 11, 12 ou 13 anos de idade, ela era a última rua provida de calçamento antes de chegarmos à rua do Carreiro, repleta de poeira e lama quando chovia. Dona de uma inclinação que, olhando assim de esguelha, deve beirar seus 45° graus, a rua parecia possuir uma aura especial e convidativa a qualquer ato transgressor. No auge de minha ingenuidade e falta de percepção de mundo, momento propício aos desabrochamentos infantes, e ainda longe do despertar maduro para com o apaixonante mundo das letras, jamais passaria por minha cabeça que no cume daquela ladeira habitava uma escritora, espécie de deidade em quem mais acredito nas contemporâneas horas dos meus sopros vitais. Um espaço que até hoje tem o poder de me emocionar quando dos meus esporádicos retornos.
“Ruas...
Oh, ruas!
Diversos são teus nomes,
tuas esquinas, tuas histórias!
A minha é a Tito Luna Freire,
e a sua, como se chama?
Rua das saudades, dos amores.
Rua das árvores, das flores.
Um dia caminhava o poeta
reparando os postes, as placas,
os carros, os transeuntes... e as ruas,
ruas que nas horas claras
assentam emborrachados pneus e calçados;
que nos dá passagem, servindo-nos
com suas passarelas apoteóticas
e com suas entradas para a vida.
Ruas...
Oh, ruas!
Ruas dos Joões e das Marias,
dos políticos e das politicagens,
dos mártires e pensadores.
Ruas dos apaixonados e das dores,
ruas que me ensinaram os passos
compassados do porvir fumegante.
Ruas que nos átimos de total breu,
espiam-nos como que víboras perseguidoras,
dando a isenção de seus vales e regos
aos surrupiadores e bandidos encapuçados.
Ruas dos silêncios e dos medos,
ruas dos sussurros amantes desgovernados,
dos beijos e dos amares mais loucos
...
Ruas.
Oh, ruas!
Peço que me deixem passar,
que me encurtem as distâncias,
que me ensinem os refúgios,
pois trago a fumaça alva dos meus devaneios,
o canto ufânico e patriótico do coração,
o sentimento humano mais empanturrado,
a temperatura vulcânica dos sentimentos mais febris.
Ruas...
Oh, ruas!
Deixais o sonhador passar...”
Tudo começou quando ganhei do meu padrinho de batismo, Tibiro, uma Monark BMX¹ nas cores amarela e preto, verdadeiro sonho para um garoto naqueles idos. Pronto, não havia mais limites. Foi como se me presenteassem o direito de pedalar meus sonhos mais recônditos. Depois de aprender a nela me equilibrar e após unhas roxas, arranhões e muitos tombos, lá estava o menino montado em sua máquina libertária. E dali por diante o mundo era apenas eu, minha bicicleta e a ladeira da Maria. Unidos em ecos uníssonos e objetivos parecidos, por lá estive manhãs, tardes e noites a brincar de me arriscar e a destemer meus impedimentos comportamentais. E sem contar que a maior alegria era saber que no outro dia a "ladeira sem-fim" - como eu a chamava -, intacta e de braços abertos lá se encontraria novamente.
Um ritual. No topo, lentamente buscava visualizar toda a extensão da ladeira, que terminava onde hoje é a Padoca², bem na descida para o Alto do Ouro³, no início da estrada para a Caiçara e para a Água de Rega, limitando-se também com a praça velha onde fica o círculo do Pau da Bandeira, pequena roda feita de cimento onde acontecia o troca-troca de mercadorias dos mais diversos tipos e finalidades: da farinha de mandioca produzida nas zonas rurais, fumo-de-rolo e cachaça, passando pela venda de animais e indo até o comércio de pedras preciosas e semipreciosas garimpadas nos riachos milionários da Chapada Diamantina. Ouvia os silvos do vento, a “presença” do silêncio, e tocava a pôr força nos pés para embalar a alma de adrenalina e êxtase num pedalar alucinado que durava pouco mais de meio minuto. Segundos mais que suficientes para sentir a felicidade tocar todo o organismo.
Repetia incansavelmente o curto trajeto da rua Artemísia Nogueira, subindo e descendo num tremendo capricho gozoso que aquela brincadeira a mim transmitia. E foi assim por dias, meses, anos. Bicicletas de aro 26 passaram por minhas mãos e lá eu, fiel a minha ladeira. Ainda empenhado neste meu exercício de lembrar, surge em minhas retinas as comemorações de Páscoa feitas pelo Educandário José de Arimatéia, escola onde estudei até a antiga 8ª série do ensino fundamental, quando ainda na insuperável direção de sua fundadora Maria do Carmo, a Carminha. O desfile das bicicletas e o prêmio para a mais enfeitada, que sempre a colega de classe Ykatierina levava para casa. Aquele buzinaço, aquelas cores colorindo as ruelas e avenidas de Iraquara, e a minha expectativa maior para com o momento de atravessar a minha ladeira.
Eu deixava a carreata das "magrelas" passar, ir distante de mim, para que eu pudesse atravessar dignamente a rua que mais amei em toda a minha vida. Lá embaixo todos, em cima eu a pedir proteção. Era hora de mais uma descida, veloz, divertimento único. Era hora de ser criança, flutuar após o torque das polias regidas pela corrente. O átimo da minha Iraquara mais linda, flagrante da mais íntima felicidade. A rua do meu coração, cortada num incandescente vôo, enquanto os outros, no sopé, juntos se iam; enquanto Maria, descansada em branco, tecia mais uma sensível linha de sua rica poesia.
Notas.
1 – Marca e modelo de bicicleta.
2 – Estabelecimento tradicional onde se vende pães e derivados.
3 – Elevação de terra na saída para Água de Rega, onde se faz utilização de irrigação para cultivo de hortigranjeiros.