domingo, 3 de abril de 2011

Solfejos particulares

Por Germano Xavier

Com a evidente certeza de que os corpos
que moram dentro dos refrigeradores estão em completa paz...


Sair de uma análise do discurso linguístico para entrar em contato com reagentes químicos no interior de um laboratório, “olvidar” das tantas histórias de pobreza e das roupas maltrapilhas que muitos dos grandes nomes da literatura usufruíram para dar de cara no corredor da universidade com um bando de homens e mulheres vestindo guarda-pós brancos, deixar de lado os estudos mais aprofundados sobre o “ser” do texto para analisar a anatomia do corpo humano não são lá tarefas das mais simples, principalmente para alguém como eu, que lidou por cinco anos ininterruptos apenas com a anatomia da palavra e todos os seus mecanismos funcionais. O curso de Odontologia começou no primeiro dia deste mês e já aprendi a pipetar substâncias, relembrei nomes da parafernália que compõe um laboratório químico, entrei em contato mais aprofundado com a célula, com a molécula, tive aulas sobre senso comum, ideologia, ética, conhecimentos concretos e abstratos de todos os gêneros, conheci novos professores, colegas, quiçá futuros amigos ou companheiros de profissão, novos ares, tudo muito novo e também muito velho para mim. É apenas a primeira semana de aula, e de uma coisa estou certo: estou me aproximando cada vez mais do humano no homem. A partir do momento que entro em contato com o corpo e sua morfologia, também entro em contato com os estatutos da dor humana. Quando agora leio sobre as organelas celulares e suas particularidades fisiológicas, estou entrando em um universo onde poucos são capazes de conjugar, pois não sabem ou não souberam que por trás de tudo isto há uma outra força, aprioristicamente invisível, porém sensória e sensível, que comanda o todo do tudo. Estou falando da Poesia. Feliz daquele que consegue enxergar a dor na gênese de um sorriso, abençoado aquele que enxerga a razão da vida na gélida epiderme de um cadáver estirado sobre um mármore numa sala onde um forte cheiro de indigência interroga olfatos diversos. Há uma razão em se estar vivo, um motivo especial para nossa massa corpórea estar em pleno funcionamento! Há algo muito poderoso por dentro de nossos crânios e de nossas ossadas, algo misterioso nos combustiva e nos impulsiona a dar o próximo passo perante o futuro do tempo. Engana-se aquele que pensa que mudei de assunto. Não, eu continuo a falar da Poesia. Estou saindo das aulas com uma impressão cada dia mais certa de que é a alma a Poesia, especificadamente a alma humana. É lá que ela se esconde – este ser mutante -, e não no corpo. A Poesia não é o corpo das coisas, tampouco reside no corpo do homem. A Poesia parece estar congelada nos refrigeradores onde descansam os corpos dos indigentes retalhados. Não se pode dividi-la em partes, não se pode estudá-la usando de simples manuseios ou olhares. A Poesia das coisas e do homem está dentro de cada um que enxerga e que a princípio não vê que a Poesia está ao seu alcance, diante de seu corpo, à distância de um primeiro passo.

Um comentário:

Germano Viana Xavier disse...

Crédito da imagem:

"Appeared and Was Gone by *YourForgiveness"
Deviantart