sexta-feira, 22 de abril de 2011

Notas sobre uma Copa do Mundo


Por Germano Xavier 

O seu Miguel não era nada, mas o seu Miguel também era tudo. O "nada" a que me refiro está ligado a laços sanguíneos, parentesco ou qualquer coisa que dialogue com árvores genealógicas. Já o "tudo", por ora eu explico. Foi num dia muito chuvoso que o conheci. Resolvi jantar em um restaurante que ficava a quatro quarteirões da minha casa, quando fui surpreendido, na volta, por um pé-d'água daqueles nada econômicos. Estávamos completamente encharcados, literalmente de cabo a rabo, sob o toldo de uma loja, na principal avenida do centro da cidade. Ele, com os cabelos grisalhos e lisos escorrendo pelo rosto ovalado, trazia consigo, embrulhado cuidadosamente em uma sacola plástica, o que me pareceu ser uma pequena agenda na cor preta. Confesso que fiquei muito curioso em saber o que guardavam aquelas páginas, tão salvaguardadas por aquele senhor que devia contar os seus cinquenta anos de idade. Ficamos ali por longos minutos, entre receios e ansiedades. Creio que foram quase duas horas e, não obstante termos iniciado um diálogo, nossa conversa não apontou nenhuma pista para as tais anotações. Finalmente, o temporal havia cessado. Nós, que já tínhamos até trocado endereços e números telefônicos, resolvemos partir para os nossos destinos. Durante todo o percurso, feito a passadas largas e alígeras, pois um chuvisco ameaçava possíveis consequências de maiores proporções, percebi inúmeros barbantes preenchidos por bandeirolas nas cores verde e amarelo esticados pelo chão ou, ainda, enrolados em árvores e nos fios da rede de energia elétrica. Era tempo de Copa do Mundo de futebol e, a esta altura do campeonato, todos os logradouros, becos e vielas da urbe encontravam-se enfeitadas e coloridas com os tons do uniforme da seleção canarinho. Como era bom se sentir vivo e fazer parte de toda aquela corrente positiva, de todo aquele espetáculo de grandiosidade e beleza. Apesar do visível estrago causado pela chuva, nada faria com que aquele sentimento de alegria e felicidade perdesse um pouco do seu brilho. Certamente, no outro dia um mutirão seria formado no intuito de reerguer as bandeirinhas e repintar, agora com demãos ainda mais encorpadas, os muros e os pisos que ficaram descaracterizados devido a ação da água que batia contra as paredes. O torneio mexia com toda a nação, ou melhor, com todas as nações do globo. Trinta e duas seleções disputando o mais importante evento esportivo do planeta. Trinta e dois países lutando uma guerra pacífica, onde o vitorioso não é aquele que devasta um povo, extermina centenas de famílias ou arrasa os sonhos de milhares de crianças, mas sim o que mais balança a rede do adversário, fazendo nascer milhões de sorrisos orgulhosos por terem nascido justamente naquele país brioso e triunfante. Encontrar o sono, naquele dia, tornou-se uma tarefa quase impossível. Fiquei em meu quarto, com a lâmpada desligada, matutando sobre o teor dos registros que preenchiam os brancos daquele ementário misterioso. A imaginação correu solta. Não havia limitações ou fronteiras para qualquer pensamento hipotético. Após várias cogitações, decidi acreditar que o seu Miguel era um cientista social, um antropólogo ou qualquer pesquisador ligado a esses segmentos. Sim, esta era a melhor forma de eliminar todas as minhas titubeações concernentes ao seu Miguel e à sua enigmática caderneta. Deveras, seria uma atitude demasiado inteligente da minha parte pensar assim. Então, só me restava elaborar as devidas conclusões. Talvez aquele homem estivesse concatenando sobre como a rotina de vida de toda a humanidade muda drasticamente neste ciclo de jogos. Seria ele integrante de um deste órgãos internacionais que a cada ano injetam novos dados sobre o andar das civilizações?, como, por exemplo, mortalidade infantil, expectativa de vida, explosão demográfica, analfabetismo, índices de pessoas infectadas pelo vírus HIV e demais moléstias que, infelizmente, ainda assolam várias regiões... Talvez fosse esse o meu desejo mais profundo e sincero. É que tudo fica ofuscado quando chega esta época. As mazelas e os fantasmas que rondam a nossa realidade custam a aparecer. Parece que tudo vai de vento em popa, quando na verdade outros milhões choram as suas misérias e fomes. Minha vontade era a de que existissem milhares de pessoas como o seu Miguel, trabalhando arduamente em prol de um mundo melhor, mais humanizado, menos desigual, enquanto multidões se divertem e se lambuzam em esplendores artificiais e quase sempre mecânicos. Que seja força da imaginação, não importa. O que interessa é a certeza de que já havia sido dado o primeiro passo, já que toda atitude humana tem de, antes de qualquer coisa, passar pelas aléias mais arborizadas de nosso universo ficcional.

Um comentário:

Germano Viana Xavier disse...

Crédito da imagem:

"One Seat Two by ~BlotoAngeles"
Deviantart