Por Germano Xavier
Romance de Tese e Romance de Não-Ficção: Aproximações das genéticas textuais invertidas em Cacau, de Jorge Amado, e Os segredos de Joe Gould, de Joseph Mitchell.
Uma das características mais presentes nas narrativas moderno-contemporâneas é a fusão de gêneros. Tal afirmação ganha ares de verdade a partir do momento em que iniciamos a leitura de um livro e em determinada página eis que uma pergunta surge: que espécie de livro estou lendo, um romance ou uma reportagem, um texto científico ou uma novela, jornalismo ou literatura? O leitor, por ora desacostumado com tal fato, incidentalmente desconfia, buscando possíveis respostas para a desencadeada dúvida. A década de 60, só para citar um dos inúmeros exemplos, principalmente nos Estados Unidos da América, viu brotar das redações dos grandes periódicos um contingente de jornalistas interessados em mudar o panorama da profissão, ou melhor, do seu objeto de trabalho: o texto.
Nos anos 60 do século XX, liderado por nomes como Gay Talese, Tom Wolfe, Normal Mailler, Joseph Mitchell e, principalmente, Truman Capote, nasce um estilo de escrita baseado na junção dos sentimentos jornalístico e literário, que viria a ser chamado tempos depois de New Journalism (Novo jornalismo) ou Jornalismo Literário. Quase uma geração antes, o escritor baiano Jorge Amado daria como publicado o seu primeiro livro: Cacau. O ano era o de 1933 e seu livro foi logo classificado como sendo um legítimo exemplar do que se convencionou chamar de Romance de Tese. Cacau é, indubitavelmente, um livro diferenciado na obra de Jorge Amado. Imiscuído, na época, no seio dos debates comunistas, mormente militando a seu favor, Amado deixa visível em Cacau a sua preocupação com a esfera social, redigindo um romance extremamente politizado e que, de maneira inconteste, certamente fora tecido a partir de muita observação e investigação para com a realidade do momento, nesse caso as relações humanas e a exploração do trabalho envolvendo plantadores de cacau e seus empregados.
Em nota na abertura do livro, Jorge Amado escreve: “Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance proletário?” Fica evidente – e legitimado depois que confirmado pelas próprias palavras do autor, diga-se de passagem -, que estamos diante de um romance que não é apenas um romance, mas que consegue extrapolar as linhas divisórias de uma mera contação de causos ficcionalizada, ou de uma simples narração composta por invencionices. Talvez o que o autor pretende, ao dizer que privilegiou a “honestidade” em detrimento de uma “literatura”, seja mesmo a explicitação do fato de que fora preciso desvencilhar-se de um modelo único e buscar outro espaço de expressão, esse mais ligado ao território do real que do imaginário, para que ele mesmo conseguisse transmitir satisfatoriamente a mensagem almejada. Parte-se do pressuposto de que Jorge Amado, utilizando-se do suporte do romance e de técnicas estritamente relacionadas ao mundo literário, escreve um texto baseado numa realidade e que, de certa forma, transfigura-se na própria realidade, o que, por conseguinte, acaba por ser essa imagem do real criada a realidade que de fato é ou acontece.
O movimento inverso ao presenciado na produção da escrita de Cacau pode ser percebido na obra Os segredos de Joe Gould, do jornalista norte-americano vencedor do prêmio Pulitzer, Joseph Mitchell. O livro, inicialmente publicado em partes na revista The New Yorker no ano de 1964, ao estilo folhetim, nasceu como uma Grande-Reportagem, gênero que sempre causou polêmica no meio jornalístico e também muito caro a alguns desses profissionais. O livro conta a história de um mendigo nova-iorquino que dizia ser o autor do maior livro já escrito em todo o mundo. À base de muita conversa e de muita investigação, Mitchell termina por escrever uma das mais aclamadas reportagens de que se tem notícia. Porém, há mais em Os segredos de Joe Gould do que simplesmente um trabalho de apuração e transcrição dos fatos.
Do mesmo modo como aconteceu com Truman Capote, quando passou mais de sete anos de sua vida envolvido na escrita de sua obra-prima A sangue Frio, tornando-se amigo-confidente de um dos acusados pelo assassinato da família Clutter, Joseph Mitchell também partilhou de uma intimidade impensada com o protagonista de sua obra. Talvez um motivo a mais para que a forma e o suporte fossem repensados pelo autor. Quem lê o livro, em nenhum momento sente a rigidez e a secura narrativa próprias da linguagem jornalística. Longe disso, de novo acontece uma ruptura de gênero, o que parecia ser estruturado mecanicamente, com referências restritas ao segmento do real, agora adquire nuances do imaginário, do fabuloso, do fantástico.
A descrição minuciosa do personagem, tanto em seus aspectos físicos quanto psicológicos, as ferramentas utilizadas para efetuar as investigações, a preocupação com a harmonia que se dará entre o real e o que é apenas imagem desse real, a escolha dos recursos de escrita, tudo isso faz com que, lembrando Talese, o que não é ficção passe a ser lido como tal. Em Cacau, Jorge Amado, sabedor das artimanhas da literatura, “realiza” a ficção, imprime ao romanesco tons marcantes de uma Grande-Reportagem, tecida através de muita observação, como se fosse ele um repórter que escrevesse literatura, e Mitchell, um literato que escrevesse reportagem. Por essas razões, os livros ganham em dimensão e importância, pois que são experimentações, sejam elas propositais ou não, de uma arte ainda passível de inúmeras mutações. Tido hoje como superado, principalmente pelo boom da informação em tempo real dos meios midiáticos atuais, o Jornalismo Literário tem, justamente dentro desse contexto onde a velocidade é mais valorizada, um papel fundamental a desempenhar: é a ele dado o direito ao aprofundamento dos fatos, ao relato mais acurado, e por isso ainda não é um campo de atuação falido, o mesmo acontecendo com romances como Cacau. Os dois livros provam que a vida está acima de qualquer estrutura, de qualquer molde, demandando apenas ao seu burilador a escolha da estratégia mais adequada para o ataque.
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"eye by ~versae"
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