Por Cláudia de Souza lemos
Mestre em Ciência da Literatura (Semiologia) – UFRJ e docente no
Ensino Público.
A sombra do meu corpo ia sempre adiante, comprida, muito comprida, tão comprida como um fantasma, muito colada no chão, seguindo o terreno, ora andando em linha reta pelo caminho, ora subindo o muro do cemitério, como quem quer assomar-se. Corri um pouco; a sombra correu, também. Parei; a sombra também parou. Olhei para o firmamento; não havia uma só nuvem a toda volta. A sombra acompanhar-me-ia, passo a passo, até chegar.¹
Onde há muita luz, as sombras são mais profundas, diz Goethe, em Sombras Adentro, a poesia iluminada, na subjetivação paradoxal, e por isso abissal, da tessitura provocativa e inteligente de Germano Viana Xavier, leva o leitor às vias submersas de uma leitura leve, mas extremamente reflexiva, dialógica e meta-narrativa.
Esta maravilhosa seleção de contos é um mergulho de coragem pelos vales obscuros do si mesmo. Uma aventura que toma o fluxo consciente, para alcançar o inconsciente do refluxo. É uma sinfonia que premedita na busca fragmentária, o encontrar-se inteiro para fechar a porta, percebendo o eu, estancado sob a soleira.
Margens de escuridão, luz duvidosa, brilho revelador, acompanhados pelos sons de uma atmosfera misteriosa, que provoca o silêncio no escuro de todos os entes noturnos, elementos profanos e sagrados que coabitam as zonas sombrias pessoais ou impessoais do ser humano.
Discurso inquietante tecido por um viés de luz e sombra. Há uma sombra que não se quer parda, e uma luz que não se quer neon. Pelos contos adentro, os trajetos das palavras vão construindo, pelas entrelinhas e os intrasignos, o sentido da leitura e uma enorme cumplicidade de dimensão criativa entre o texto e o leitor.
Composição inteligente que recorta e cola personagens, desviando o olhar do leitor entre cenas, falas e interferências narrativas, o texto oferece a surpresa, como um vulto inesperado que aparece e desaparece, através de parágrafos e finais inusitados.
A tensão entre a escritura e a escrita, o poeta que escapa ao narrador, o jogo de poder entre a criatura e o criador, a gaveta como cemitério de todos os textos, personagens-sombras que nasceram à luz da criatividade, mas sem jamais negarem influências iluminadoras, fazem do caos a literatura, a narrativa de tantas narrativas tecidas pelo talento, olhar e discurso original do autor.
Sombras Adentro declara uma dor inquieta no âmago do texto, que grita pelo campanário denunciador do discurso insano, posto que nascido de uma natureza lúcida e fronteiriça que esbarra a luz e a escuridão. Os contos alimentam as sombras e penetram-na, sem resistências, contenções, ou medo de encontrarem a luz que os gerou.
Nesses bosques de sombras, o leitor adentra o texto, à medida que se projeta como sombra na contraluz da busca, que o lança e faz interagir, construindo o intertexto, próprio da dialógica. E por detrás das palavras projetam-se sombras a serem decodificadas, à luz da leitura.
Há uma administração de sombras e silêncios, com hábil dosagem de claro-escuro, uma boa parte de mistério, provocado pela obscuridade fecundante, que recusa saber dos seus personagens aquilo que, provavelmente, nem eles mesmos sabem. Há uma abstenção em penetrar nas consciências, que necessita sempre de uma zona de sombra e de ambiguidade.
Tudo começa no próprio título do livro, que é um jogo de sentidos, convidando o leitor a penetrar nas sombras alheias ou suas. Esse fenômeno transcorre em toda a leitura, através de opostos e símbolos que estão dispersos, em tal profusão nos textos, que se torna supérfluo apresentar comprovações para isso. No entanto, diante da ambiguidade da linguagem da alquimia (Tanto poética, quanto fisicamente!), vale a pena aprofundar-se um pouco mais na maneira como são tratados os opostos, em função de um exercício meta-literário rico e inteligente.
Os pares de opostos formam, muito antes, a fenomenologia paradoxal, que é a totalidade humana do texto literário, em sua realidade fictícia e há um tempo e espaço circulares, em que o texto gera outros textos e contextos, que amarra as oposições com maestria, assim como complementares pilares da produção literária: o criador e a criatura nos bastidores do texto, consagrados em contos como “Nós, ele e as Persianas azuis”:
“Tenho vontade de ir até ele e assoprar uns dizeres, dar-lhe algumas dicas acerca das coisas que somente quem está na dimensão do fictício conseguiria enxergar, falar do que ando vendo nos bastidores do conto que ele escreve, poder de alguma forma fazer com que o seu trabalho não lhe seja tão duro como penso estar sendo. Porém, ao mesmo passo em que todas estas maneiras de pensar me ocorrem em consciência, acredito mais fielmente que ele é um homem forte por demais para se deixar abater pelas naturais adversidades de sua profissão. O poeta está mais preparado do que eu posso imaginar, disso nutro quase uma certeza.”
A sombra do autor adentra o texto, que promove reflexões através do personagem, a respeito do próprio criador, escritor, poeta. A independência do personagem, no entanto, não o impede da insegurança de deixar de existir se o escritor não continuar a história, matá-lo no contexto da mesma, ou se, simplesmente, ele - o personagem- abandonar o texto, lançando-se a sua margem e liberdade: as persianas azuis:
“Pensei ruidosamente no que seria de mim a partir de agora, no que faria, assim, destituído do ser de quem mais precisava.
Para não sofrer muito, sentei-me novamente no mesmo lugar e preferi pensar na possibilidade de o poeta ter saído para comprar um pacote de café ou um maço de cigarros para a prometida noite de exercício da literatura.
Eu não podia, sob nenhuma circunstância, aproximar-me daquelas persianas azuis.
Era a minha liberdade que estava em jogo. Era o conhecimento das razões da morte da mulher que mais amei em toda a minha vida que me queimava a alma. Era a sabedoria dos pensares que se passavam pela mente maquiavélica do Sr. Carvalhaes sacudindo meu ser. Era eu, mais do que nunca, dependendo.
E como sempre quis crer, o fim era algo impossível de ser pensado. Por isso não movi um centímetro dos meus medos, e ali persisti, na gélida e temente espera das gavetas."
Torna-se sedutor esse jogo de elementos da narrativa, essa troca de papéis, essa subversão textual, causadas pela dúvida do personagem em libertar-se, ou não. Essa manifestação criativa, em Sombras Adentro, remete-nos à citação de Jacques Derrida, sobre Lacan, feita por J. Kristeva²:
A psicanálise (Lacan) já tinha notado: o sujeito da enunciação vem sempre mascarado de sujeito do enunciado (e reciprocamente). Quais são as consequências desta mutação, operada manisfestadamente na cena histórica do discurso pela máscara?
Pelo fato de apagar a pessoa, fazer parar a temporalidade e bloquear o enunciado de uma mensagem, o mecanismo da máscara anunciava um espaço de pensamento OUTRO que o da recitação vocal e do relato narrativo.
Esse espaço OUTRO não é o da comunicação (troca de um objeto discursivo entre sujeitos). É o espaço da elaboração lenta, permutante, nascente e moribunda do pensamento, antes de sua definitiva constituição no sujeito, no tempo, no enunciado. É o espaço dos “bastidores”, o único lugar do jogo, sem aquela RIBALTA que consagra a morte do jogo no espetáculo.
A leitura do conto ressaltado é uma demonstração da composição deste conjunto de textos. O livro revela uma escrita madura, criativa, que revela consistência literária e representa um bom nível de ficção.
Não há pretensões, neste posfácio, em estabelecer axiomas sobre este livro, ou tecer intensões vaidosas, típicas de críticas literárias, quer-se antes enaltecer a fecundidade desta produção e da condição talentosa de seu autor. E mostrar que, para tanto, basta uma análise do primeiro conto desta obra, como couvert, para principiar essa leitura saborosamente literária, que merece ser digna de tamanho prazer. Embora, pareça incoerente, não se deseja aqui concluir, terminar, ou dar fechamento a leitura de um livro, mas oferecer um olhar para infinitas releituras que poderão acontecer, promovendo a circularidade, onde o fim não existe, como no filosófico epitáfio de Tristan Corbière3:
Salvo os amorosos principiantes ou findos que querem principiar pelo fim há tantas coisas que findam pelo princípio que o princípio principia a findar por estar no fim o fim disso é que os amorosos e outros findarão por principiar a reprincipiar por esse princípio que terá findo por não ser mais à eternidade que não tem nem fim nem princípio e terá findo por ser também finalmente igual à rotação da Terra onde se findará por não distinguir mais onde principia o fim de onde finda o princípio o que é todo fim de todo princípio igual a todo princípio final do infinito definido pelo indefinido. Igual um epitáfio igual a um prefácio e vice-versa.
A transformação decorrente da pós-escrita, pós-leitura, promove uma escritura pós-cênica em que o texto que se leva, na alma e no olhar, passa a engendrar uma permutação e uma recursão que nos faz, como uma sombra, escorrer para fora do palco, renunciando ocupar a ribalta. Portanto, retirar-se de cena, neste momento da obra é seguir, adentro, na infinitização do pensamento e afora, provocando da plateia uma salva de aplausos ao seu criador.
1. CELA, Camilo José. La família de Pascual Duarte. Pág. 195: Escritor Espanhol da genuína traição picaresca.
2. KRISTEVA, Julia. O texto do Romance: Estudo Semiológico de uma estrutura discursiva transformacional. Horizonte Universitário, 1984. Pág. 181.
3. CORBIÈRE, Tristan(1842-1875). Epitáfio citado in: abc da Literatura de Ezra Pound, cultrix, SP, 16a ed. 2010.