Por Germano Xavier
Para Liene Márcia,
sempre atenta ao que escrevo.
Ao contrário do que ele pensa, não sou eu que escrevo esta história. Se é uma história? Sim, é uma história. Nem tão diferente das demais que ele já escrevera nesta vida, nem tão igual as que porventura ainda não saíram dele nas noites de seus dedos sem juventude. Talvez uma história como qualquer outra, com um enredo onde o mistério é a peça-chave, com personagens intrigantes e maliciosos, outros bondosos com idiossincrasias marcadamente caricaturais, com um narrador obscuro e ao mesmo tempo por demais falacioso, e tantos outros aspectos. Uma história que precisa de um começo, como qualquer outra, assim como um meio. De um fim, eu já não saberia dizer. Para mim, que já estou dentro disso há algum tempo, o fim não existe numa obra de arte.
De onde estou, vejo-o em inteireza. Corpo esguio, forte, rosto arredondado, olhos ligeiramente cansados, ombros largos, mãos macias. Num dos cantos dos lábios, mordisca um palito de dente, sugando-lhe o acre néctar que parece vazar de dentro do pequeno objeto pontiagudo. Deitado no bicama pequeno para seu grande tamanho, o poeta apenas repara a tinta branca do teto do apartamento onde mora. A tinta está envelhecida pelo tempo, adquirindo quase um tom amarelo-creme. Duas almofadas vermelhas lhe dão suporte na altura do pescoço, para que seus olhos bem estejam diante do livro que agora ele folheia, lendo os rebordos dos textos. Percebe também, e muito antes de ter deitado, que há uma colcha alaranjada sobre a cama improvisada por onde estica suas costelas. Lá está o artesão das palavras, aparentemente ocioso, disperso de tudo que lhe rodeia. Enquanto que eu, personagem de sua genialidade, sentado parcimoniosamente numa cadeira fria de madeira, espero ansiosamente por suas ditosas ordens.
Não vejo nele a vontade pela palavra lhe incendiar o rosto como na noite trespassada, onde virou a madrugada escrevendo um conto que já passa das dezenove páginas. Penso que virará uma novela, pelo restante dos acontecimentos que a ele ainda faltam ocorrer. Posso afirmar tal maneira o que disse agora, pelo simples motivo de também me saber personagem do conto, mesmo que subalterno ao protagonista, o Sr. Carvalhaes. Olhando o poeta no estado próximo ao sonolento em que se encontra, posso crer que está apenas repousando um pouco suas maquinações mentais, para num bem perto instante voltar, em todo vapor, ao ofício que tanto lhe domina.
Tenho vontade de ir até ele e lhe assoprar uns dizeres, dar-lhe algumas dicas acerca das coisas que somente quem está na dimensão do fictício conseguiria enxergar, falar do que ando vendo nos bastidores do conto que ele escreve, poder de alguma forma fazer com que o seu trabalho não lhe seja tão duro como penso estar sendo. Porém, ao mesmo passo em que todas estas maneiras de pensar me ocorrem em consciência, acredito mais fielmente que ele é um homem forte por demais para se deixar abater pelas naturais adversidades de sua profissão. O poeta está mais preparado do que eu posso imaginar, disso nutro quase uma certeza.
Ele agora esboça alguns espreguiçares, faz alguns movimentos de rotação com o tronco, pára, força os músculos da face propositadamente. Levanta-se lentamente, pôe as mãos nos joelhos, parece estar sendo atingido por uma leve vertigem. O poeta está diante da persiana que lhe cobre as vistas para a abertura da janela da sala, onde estava a ler, tentando olhar por entre as pequenas brechas que lhe sobram. Estica os braços e descerra as duas metades da vidraria, sem levantar por inteiro a peça azulada que lhe serve de escudo. Está diante da luz do sol, cortada em feixes retangulares e que atingem o tecido de sua pele como diminutas flechas de luz. Apóia-se sobre os antebraços, flexiona um pouco o seu corpo, respira um ar mais aberto.
E pensar que daquela mesma janela o poeta que me criou fez defenestrar a Cândida, a única personagem feminina do conto que está escrevendo, esposa do Sr. Carvalhaes e por quem eu sentia calafrios de paixão desde a mais tenra idade. Até hoje não entendi o motivo que o fez escrever o suicídio da mulher que eu mais desejava. Por isso, temo pela antecipação de minha morte no conto. Assim, se me houvesse a chance de fazer um único pedido ao poeta-contista antes dele decretar o meu sumiço no texto, certamente seria o de viver até compreender as razões do suicídio praticado por minha amada Cândida.
Sr. Carvalhaes é um sujeito que nasceu em berço de ouro, sempre teve tudo nas mãos, nunca precisou estudar muito ou “dar o sangue” - como meu escritor gosta de escrever às vezes, utilizando ele de uma linguagem mais dada ao coloquial – para conseguir as coisas que queria. Ficou vivo até os trinta e nove anos para enfim se tornar o mandatário de todas as empresas beneficiadoras de algodão que o falecido pai lhe deixara por meio de testamento, antes de bater as botas no inverno daquele ano.
Sobremaneira poderoso, Sr. Carvalhaes apoderou-se de Cândida como um suvenir por ele muito desejado, e com ela se casou, sem ao menos se preocupar se a moça realmente o amava de verdade. Tudo indica que não, Cândida não era mulher de se deixar levar pela fortuna alheia ou pelo prestígio conseguido de modo fácil e indigno. Nunca a vi ostentando orgulhos materiais, ou sustentando ambições na forma de reluzentes brilhantes. O que me fascinava em Cândida era teu jeitinho meigo, teu coração puro como a água de uma fonte no campo, teu gestos silenciosos e pensados, teu excesso de sentimentalidades.
O dono das empresas Algodões & Cia tinha uma mania, era quase tudo que sabia sobre ele, haja vista minha entrada tardia na história pelas mãos do poeta. Todos os dias, em horas e minutos quase que sagrados, Sr. Carvalhaes se dirigia às três janelas de seu escritório, na Rua Hagamenon Paiva, 223, zona leste da cidade. Por volta das nove horas e vinte minutos da manhã, o rico homem dirigia-se à janela menor, cujas laterais da sarjeta possuíam, cada qual, um vaso com flores coloridas. Por cerca de dez a quinze minutos lá permanecia, travando pequenos monólogos com as simpáticas plantinhas. Três e meia da tarde era a vez dele ir até a janela do meio do escritório, onde móbiles com fotografias de sua família pareciam sinalizar que ele não estava sozinho no mundo.
Era a janela onde ele permanecia por mais tempo durante o dia. Cerca de vinte minutos, aproximadamente. A terceira, e última, era visitada por ele sempre pouco antes de ir embora, no horário bem perto das oito da noite. Era seu momento de maior reflexão, quando parecia que tudo que havia sucedido no dia lhe atingia a alma, implicando-lhe a trituração de tudo dentro de si. Naquela janela, Sr. Carvalhaes maquinava seus dias de amanhã, futurava seus agires de fornicação com Cândida para quando chegasse em casa e a encontrasse, sempre pronta aos seus quereres, planejava as decisões em grande escala e longo prazo que tomaria em prol da continuidade da empresa. Não havia nenhum atrativo na tal janela, somente a leve presença de uma persiana azul que cobria a vista para os prédios vizinhos e o parque mais ao fundo.
A imagem do Sr. Carvalhaes escorado à janela era a mesma que agora sucumbia às minhas retinas, provavelmente imaginárias: a do poeta pensando, a do meu escritor elaborando estratégias e artifícios para poder dar seguimento a história que havia iniciado. Depois da morte de Cândida, eu me tornara a pessoa mais importante na vida do poeta. Sr. Carvalhaes agora não passava de um coadjuvante, carregado de mistérios tomados por mim como que quase insolucionáveis, homem mesquinho, indiferente à vida, cheio de rumos ainda dentro da trama, porém sem serventia para o momento que a narrativa pedia. Era o sinal de que minha liberdade estaria para ser posta à prova, assim que o poeta sentasse à escrivaninha e recomeçasse a contar. Eu me sentia livre, mas não havia como me desprender do poeta. Ele era o meu pai, uma espécie de protetor, de amigo, pessoa a qual devia a minha existência.
Tenho cinco anos de vida, tempo exato da escrita do primeiro livro do poeta onde apareço entre as linhas. Esta história está sendo a minha segunda aventura pelos caminhos criados pelo escritor que me fez. Tenho tanta coisa para perguntar a ele, que vez ou outra não me asseguro de quem realmente sou e o que estou a fazer aqui. Tenho sérias dúvidas acerca de meu nascimento. Penso ter sido adotado por ele, pois não se tem registro de minha infância em nenhum livro que ele escreveu – e olha que foram quinze publicações ao todo!
Vai chegar a hora de eu o colocar contra a parede e fazer, diante de seus próprios olhos, tais questionamentos. Quero ver a cara dele quando começar a perceber que também posso ter vida própria, que posso me mexer sozinho, independente do seu desejo. Ficará estupefato quando suspeitar que o personagem que ele próprio criou é livre até certo ponto, e que, caso ele se descuide, poderá perdê-lo para todo o sempre. Desmoronará aquele homem forte, arredio, dono de si. Entrará ele em desespero, homem tão encarapuçado e protegido pela sabedoria dos anos? Melhor não pensar assim, por enquanto, pode parecer, prima facie, à pessoa que lerá esta história, que sou um sujeito vingativo, e isto, certamente, não sou.
Adentrei-me em tantos pensamentos, que não vi o poeta se deslocar de onde estava agora a pouco. Ele não está mais à janela. Não reparei em nada, tão intensamente perdido em mim que estava. Nem o balanço da sua sombra nas paredes do apartamento, nem o vento produzido por seu caminhar, absolutamente nada fora capaz de desviar a minha concentração enquanto imaginava modos de perturbá-lo. Eu estava olhando para dentro de mim e terminei me esquecendo do mundo aqui fora, a realidade que mais terei a sorte de conhecer.
Decidi levantar da cadeira e procurar meu escritor pelos cômodos, mas foi em vão. Entrei em desespero quando me dei conta de que só havia um canto da casa onde não tinha fuçado nem chegado perto. Sim, a janela. À guisa de meus olhos, o relógio de parede marcava quase oito horas. O Sr. Carvalhaes me ebuliu à mente, diante da janela com persianas azuis no seu escritório, a pensar sobre a vida. Lembrei que quando Cândida despencou da janela de sua casa, eu estava descendo os degraus da escada do prédio onde ela morava e que, quando apontei na rua, arfante e com passos aligeirados, o poeta usou de um flashback para ajudar na montagem da trama. Daí o meu sumiço temporário, a elevação de minhas recorrentes dúvidas, a minha espera pelo decurso dos episódios sentado solitariamente nesta cadeira fria de madeira a perscrutá-lo friamente em seu estranho afastamento da escrita do texto. Pensei ruidosamente no que seria de mim a partir de agora, no que faria, assim, destituído do ser de quem mais precisava.
Para não sofrer muito, sentei-me novamente no mesmo lugar e preferi pensar na possibilidade de o poeta ter saído para comprar um pacote de café ou um litro de leite para a prometida noite de exercício da literatura. Eu não podia, sob nenhuma circunstância, aproximar-me daquelas persianas azuis. Era a minha liberdade que estava em jogo. Era o conhecimento das razões da morte da mulher que mais amei em toda a minha vida que me queimava a alma. Era a sabedoria dos pensares que se passavam pela mente maquiavélica do Sr. Carvalhaes sacudindo meu ser. Era eu, mais do que nunca, dependendo de mim. Era a minha morte no conto, na história, por um fio: fio da navalha. E como sempre quis crer, o fim era algo impossível de ser pensado. Por isso não movi um centímetro dos meus medos, e ali persisti, na temente espera das gavetas.