domingo, 1 de maio de 2011

Aproximações acerca da crônica



Por Germano Xavier 

O primeiro registro documental escrito em terras brasileiras é, antes de ser avaliada como sendo uma carta/epístola, uma crônica. Ousadia querer afirmar com total certeza a data de nascimento desse gênero traiçoeiro e tipicamente brasileiro. Todavia, tal afirmação pode ser encontrada em uma quantidade inesgotável de obras e também no pensamento de diversos estudiosos da história e da literatura, sendo que ficam perceptíveis as diferentes prováveis datações acerca do alvorecer do texto cronístico. O caráter informacional, de retratação e personificação de indivíduos e ambientes presente na Carta de Pero Vaz de Caminha, escrita nos primórdios do período colonial, aliado ao sentido cronológico que lhe é intrínseco, pode ser considerado essencial para que esse tipo de narrativa valha enquanto relato histórico. A “Carta de Descobrimento” é prova mais que cabal de que o texto cronístico confunde-se com a fundação do povo brasileiro.

O surgimento da crônica é muito anterior à invenção da imprensa de tipos de Gutenberg. Por conseguinte, é ainda mais remota que qualquer manifestação de imprensa, esta vista não como a máquina, mas como o sistema comunicacional. A gênese da crônica foi a realização que assumiu o posto da historiografia da era do medievo, alcançando quase que a totalidade das regiões européias. Ela volve à contação de fatos históricos, agindo sempre sob o monitoramento de uma ordem temporal. Atividade iniciada na Idade Média, aproximadamente na segunda década do século XV, Fernão Lopes, mestre-mor das narrações portuguesas, foi um dos mais relevantes cronistas e difusores dessa prática. Ficou para ele o difícil e intrigante desafio de redigir a História Portuguesa. Desafio superado através do fabrico textual moldado na estrutura da narrativa cronística.

A Carta de Pero Vaz de Caminha foi a primeira crônica com razão histórica escrita em território brasileiro. Texto esse de extrema importância para a história da literatura nacional, onde há a produção de um relato direcionado ao rei de Portugal D. Manuel, no desígnio de lhe mostrar os detalhes da viagem e, principalmente, da chegada da armada liderada pelo navegador Pedro Álvares Cabral ao território brasileiro no ano de 1500. Segundo Bender e Laurito (1993), mesmo não sendo registrada como sendo uma crônica propriamente dita, a Carta de Descobrimento deve ser considerado um texto cronístico, já que antecipa um paralelo que une história e memória de um tempo.

Pertencente ao que foi denominado de período Quinhentista da literatura brasileira, esse documento está inserido no que se convencionou chamar de literatura de informação, posto que o maior intuito dos escritores dessa época era o de recomendar mensagens e notícias das terras descobertas para as metrópoles, fator que a tornava um libelo recheado de detalhes e dados importantíssimos. A crônica é:

“um gênero literário de prosa, ao qual menos importa o assunto, em geral efêmero, do que as qualidades de estilo, a variedade, a finura e argúcia na apreciação, a graça na análise de fatos miúdos e sem importância, ou na crítica de pessoas. São pequenas produções em prosa, com essas características, aparecidas em jornais ou revistas” (COUTINHO, 1999, p.121).

Em resumo, a crônica é geralmente percebida como qualquer tipo de relato que segue uma ordem cronológica. Outro detalhe a ser exposto logo de início é que a crônica não surgiu intimamente ligada ao ambiente jornalístico, como é de fácil associação nos dias atuais. Visto na sua atual existência enquanto gênero textual dotado de particularidades e caminhos bem definidos, já que nem sempre a crônica foi exemplo de autonomia estética, em sua acepção mais próxima à modernidade ou, ainda, como simples relato de fatos históricos, o termo "crônica" une-se à noção de tempo. Massaud Moisés (1978, p. 245) situa o significado etimológico da palavra, escrevendo: "Do grego Chronikós, relativo a tempo (chrónos), pelo latim chronica, o vocábulo ”crônica" designava, no início da era cristã, uma lista ou relação de acontecimentos ordenados segundo a marcha do tempo, isto é, em seqüência cronológica".

Marco da história e da literatura sobre o/no e do Brasil, a narrativa cronística ganhou asas rapidamente e passou, quase que de forma automática, a conquistar e legitimar o seu espaço nas páginas dos jornais impressos, amplificando seu propósito temporal para, desse modo, transformar-se num gênero narrativo autônomo e livre, ao passo que solidificava seu próprio arcabouço estético-estilístico. Segundo Carlos Eduardo Bione (2007), o surgimento e evolução da crônica brasileira estão diretamente ligados à história do desenvolvimento da imprensa no Brasil, uma vez que, ao longo de seu percurso, invariavelmente a crônica esteve ligada a esse meio de comunicação.

Aliás, o transplante da crônica para outros ambientes, que não os de mero caráter documental e/ou histórico, foi de fundamental importância para que o conceito acerca desse gênero começasse a se ampliar. "Da História e da Literatura, a crônica passa ao jornalismo, sendo um gênero cultivado pelos escritores que ocupam as colunas da imprensa diária e periódica para relatar os acontecimentos pessoais". (MELO, 2002, p.141). Dentro do suporte do jornal, o texto cronístico conseguiu distanciar-se da preocupação e da prisão do fator tempo e começou a agregar novas características, expandindo cada vez mais o seu leque de significados e, também, de usos.

A desassociação ambiental que erigia barreiras ao texto cronístico e as suas transformações mais marcantes puderam ser mais bem observadas a partir do início do século XIX, quando esse tipo de texto era chamado de “folhetim” e já muito usado pelos escritores e jornalistas da época.

“Depois do Romantismo, a crônica não se legitima apenas dentro de uma tradição da narrativa [...]. O cronista estabelece novos processos de enunciação, ultrapassa os limites impostos pela conotação, procurando transformar o exercício da crônica num espaço textual que absorve, criticamente, várias linguagens. Neste sentido, a crônica não se define apenas a partir do grau de literariedade nem do referencial jornalístico: torna-se a possibilidade de leitura dos níveis lingüísticos passíveis de uma reconstrução no interior do jornal” (PEREIRA, 2004, p.30-31).

Foi aí que a crônica começou a dialogar com mais sentimentos e sentidos humanos, bulindo com todo o tipo de inquietação e agonia do ser, mexendo com uma sociedade cujo consumo e modo de vida capitalista vinha sendo declarado a cada esquina ou avenida. Para isso, a crônica teve de adaptar-se, pois antes desse período o cronista esteve menos preocupado em expor os fatos presos pela rigidez de um tempo. Diante disso, esboçar a construção de um cenário onde a razão cedesse o lugar à imaginação acabou sendo ordem para aqueles que da crônica faziam uso. Deste modo, criou vínculo forte com a prosa e com a poesia, conquistando espaço bastante representativo no mundo da literatura.

"A crônica oscila, pois, entre a reportagem e a Literatura [...]" (MOISÉS, 1978, p.251). Percebendo os dizeres de tal afirmação, ficamos sujeitos a julgar a crônica como um suporte textual por demais dependente do sistema jornalístico. A visão é tomada como verdadeira justamente quando não tomamos consideração da capacidade que tem a narrativa cronística de ultrapassar o caráter referencial da mensagem pelos quais os textos de periódicos transitam. A fortuna de estilo e de significado da crônica lhe dá o direito de andar livremente pela totalidade de espaços enunciativos e de fomentação de discursos. Sobre a autonomia da crônica, Davi Jr. Arrigucci (1987, p.64) vai dizer, "[...] a crônica é a forma complexa e única de uma relação do Eu com o mundo [...]. Uma arte narrativa, enfim, cotidiana e simples, enroscada em torno do fato fugaz, mas liberta no ar, para dizer a poesia do perecível".

Muitas vezes combatida e olhada com desdém, justamente por saber trilhar caminhos diversos e não se render a nenhuma forma ou padrão, a crônica foi alvo de inúmeras críticas e, por muito tempo, colocada como uma tipologia textual “menor”. Mas vários foram os fatores que influenciaram para a guinada ocorrida e para a reviravolta ocorrida com a crônica. O século XX surgiu e com ele mudanças da ordem do trabalho, a imprensa se renova e torna-se mais industrial, guerras eclodem, o rádio surge, mais tarde a televisão e o computador, entre tantos outros acontecimentos que vieram ocasionar enormes transformações no seio da imprensa e no modo de se escrever o mundo.

Agora vista como um bem de consumo, a notícia passa a ser regida pelas necessidades e pelos gostos de um público leitor cada vez mais exigente e atento. Mudanças foram feitas no corpo do aparelho midiático, o que fez com que o cronista também mudasse. Tudo para dar ao seu texto um caráter atemporal, vivo e coerente para com a veloz mutação das gerações. Assim posto, fica evidente que o gênero aqui estudado é sinônimo de flexibilidade e maleabilidade. “[...] a crônica tem um ar de aprendizado de uma matéria literária nova e complicada, pelo grau de heterogeneidade e discrepância de seus componentes, exigindo também novos meios lingüísticos de penetração e organização artística" (ARRIGUCCI, 1987, p. 57).

Mesmo quando o cronista lapida os fatos tendo como fundamento a denotatividade, ele consegue, através das inúmeras possibilidades que a crônica lhe oferece, como a fácil tramitação pelo terreno da Estilística – figuras de linguagem e suas fragmentações -, como também o passear pelas diversas funções da linguagem – referencial, poética, apelativa... -, fazer com que a produção de sua mensagem e de seu discurso não fique presa a restritas significações e a poucos sentidos. Por isso, considerar a crônica como um gênero “menor” é de uma precocidade sem tamanho.

“Não há literatura sem fabulação, mas, como Bergson o soube ver, a fabulação, a função fabuladora, não consiste em imaginar nem em projetar um eu. Contrariamente a isso, ela atinge essas visões, eleva-se até esses devires ou potências” (DELEUZE, 1993, p.13). Diante de tudo o que é perceptível, e ainda da facilidade que a narrativa cronística possui de também ser sustentáculo para construção de histórias, verossímeis por completo ou não, fica o registro de que a crônica vai bem se destinada à concepção de um mundo particular. Haja vista que pode ela, diante da observação aguda do cotidiano, de sua inserção nos “ecossistemas” pretendidos para retratação, de sua fluidez textual e de sua agilidade enquanto texto, desempenhar o papel de comportar a matéria de todo um vivido, de toda uma experiência existencial e histórico.

A imprensa brasileira, agora já enrustida no século XXI e profundamente afetada por sua histórica defasagem frente à desenvolvida nos outros recantos da América, terminou por viver uma época de reavaliação de modelos e de modernização intensa. Ao mesmo tempo, a narrativa cronística, por sua vez, tornou-se uma espécie textual com infindáveis possibilidades lingüísticas, representativas e temáticas, sofrendo ainda e sempre uma enumeração de desmerecimento por ser tida como um gênero sem compromisso, de fraca dicção e sem contundência, o que soa demasiado contraditório, principalmente quando se toma o fato de que alguns dos mais importantes escritores brasileiros se renderam à capacidade que a crônica possui de transmitir, com clareza e certa simplicidade, uma mensagem. Olavo Bilac, Rui Barbosa, José Lins do Rego, Rubem Braga e o próprio Machado de Assis, tido por muitos como a maior expressão literária nacional, são exemplos que evidenciam tal fato.

A construção de um registro escrito de base histórica, feito de impressões pessoais sobre um mundo, uma sociedade ou até mesmo sobre um indivíduo é inteiramente aceitável, mormente quando se tem a percepção exata da abrangência de temas e de significados que a crônica alcança. O registro da história nossa de cada dia, captado diante da observação de conversas, coisas, comportamentos, modelos, experiências, sentimentos, alheios ou não, entre tantos outros fatores, é alvo de fácil visualização quando se adentra no texto de um cronista.

Ao cronista não suporta apenas a implicação de retratos de tempos restritos. O cronista é, antes de tudo, um inventor. Um inventor de história, real, irreal, real-irreal, surreal, pois não está preso aos fatos, ou a quaisquer moldes, e pode usar de todo o seu aprendizado de vida para a construção do que se quer. A crônica extrapola toda e qualquer esfera de significados e de representações para reinterpretar o mundo e fazer o novo.

A crônica lê o mundo e faz o mundo. De forma independente e inteiramente disposta ao poder de argumentação e análise de quem a escreve, antecipa revoluções, transforma princípios, forma opinião, dialoga com tendências, revoluciona e revoluciona-se, encontra-se e se deixa encontrar, sintetiza, engrandece, ficcionaliza e respeita o fato, fotografa o real e orna a realidade com a sutileza do olhar mais profundo, critica, emociona, desmembrando para todo o sempre o que é de caráter estático e irredutível.

O histórico da narrativa cronística revela a sua riqueza e toda a sua grandeza perante os outros gêneros e tipos textuais, pois, indubitavelmente e com certa vanguarda, a crônica, como diz Deleuze, também está inteiramente apta a “inventar um povo que falta”, (DELEUZE, 1993, p.16).

BIBLIOGRAFIA


ARRIGUCCI, Davi Jr. Fragmentos sobre crônica. In: Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

BENDER, Flora; LAURITO, Ilka. Crônica: história, teoria e prática. São Paulo: Scipione. Col. Margens do texto, 1993.

BIONE, Carlos Eduardo. A escrita crônica de Hilda Hilst. 2007, 215 f. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura) - Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

COUTINHO, Afrânio. Ensaio e crônica. In: _____. (Org.). A literatura no Brasil. 5. ed. São Paulo: Global, 1999, v. 6. p. 117-142.

DELEUZE, Gilles. A Literatura e a Vida: Crítica e Análise. São Paulo: Editora 34, 1993.

LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas Ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. São Paulo: Manole, 2004.

MELO, José Marques de. A Crônica. In: Jornalismo e literatura: a sedução da palavra. São Paulo: Escrituras Editora. Col. Ensaios transversais, 2002.

MOISÉS, Massaud. A criação literária: Prosa. São Paulo: Cultrix, 1978.

PEREIRA, Wellington. Crônica: a arte do útil e do fútil: ensaio sobre crônica no jornalismo impresso. Salvador: Calandra, 2004.

SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo: Ática, 2005. Série Princípios.

Um comentário:

Germano Viana Xavier disse...

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