segunda-feira, 26 de março de 2012

Por derrotas vencíveis



 Por Germano Xavier

Por mais que eu tente, logo te desprezo. A tua fachada pobre e sem vida, imagem de toda a tua fraqueza, não me acena nenhum tipo de esperança. Nenhum sorriso sairá de mim, até que mudes de endereço. Tua calça velha, esta tua camisa desbotada... por mais que eu tente, jamais conseguirei perceber que a verdade vive onde os olhos não podem ver. O mundo tapa, o mundo cega. O belo é certo e pronto? Ferrugem irreversível, sem conserto? A mente do homem imunda, inunda-mundo. Por mais que eu tente, jamais conseguirei perceber que a sabedoria reside onde os olhos não podem ser. Os olhos mentem, iludem a alma? Corroem o fascínio da realidade? E a pior arma contra uma amizade são os olhos da imaturidade? Por mais que eu tente, não consigo enxergar que a simplicidade é um bem que não podemos comprar. A vaidade domina, faz a cabeça. Lentamente vamos, aos abismos. Desaba-se pela falta de atitude e pela desmedida ignorância. Por mais que eu tente, não consigo perceber que o homem não se veste, não se calça... o homem não é isso que você vê? Somos todos iguais. Por mais que eu tente, eu não consigo enxergar que a aparência engana a face do homem vulgar. Porque há vencedores! E ao vencedor, um tempo inteiro de noite com direito a um desmoronamento psicótico sem retorno. Ao vencedor, o postiço e inverídico adágio do velho amor que não machuca. Ao vencedor, a magistral essência daquilo que te engole inteiro como um bicho famélico, colérico e já sem esperança pelo bem. Ao vencedor, o espartano avanço da tropa que esfacela a alma já esparsa de sentimentos. Ao vencedor, toda uma logosfera austera imputada ao vermelho mais sanguíneo, mais sanguinário. Ao vencedor, todo um deslinde esmiuçado ao fervor de um esquartejamento de carnes fervoroso, úmido, que esculpe um novo homem em pedaços partidos. Ao vencedor, o cerceamento inextrincável no corpo todo de um redil guardando as ovelhas desgarradas de um só pastor. Ao vencedor, a intervenção das armas no peito aberto e marcado pelos mísseis sentidos. Ao vencedor, toda a labialidade do arauto que traz no pergaminho a mensagem das horas finais. Ao vencedor, o morango amargo que alegoriza qualquer desfecho sem final. Ao vencedor, as honrarias da desgraça da condição humana de se sentir fraco diante da solidão. Ao vencedor, o desatrelamento salutar de si para si mesmo como forma de beijar a totalidade vital. Ao vencedor, o bem e o mal. Ao vencedor, a agonia de ser. Ao vencedor, a nódoa na manga da pele que envelhece. Ao vencedor, a justiça dos anos dos naufrágios, das catástrofes interiores, das guerras sem veneno. Ao vencedor, a paulatina e angustiante despaz do corpo. Ao vencedor, as saudades do cheiro que você sugou como quem estivesse sem o ar da necessidade. Ao vencedor, o gatilho que apunhala, a foice que abocanha, a guilhotina que tece a lógica do caos. Ao vencedor, o choro sem vergonha. Ao vencedor, o escatológico ambiente de lamber o prato. Ao vencedor, um mundo inteiro de inverdades. Ao vencedor, a atitude de flanar sem rumo, o espelho do desgoverno, o afluir tempestuoso, o desbunde sem valor, a margem marginal. Ao vencedor, nenhuma cara, nenhuma vaga normalidade, nenhum agasalho contra a madrugada que mata de inércia e falta de história, nenhum, nenhuma. Ao vencedor, a certeza de que você não é nada, nada, nada, absolutamente nada. Ao vencedor, a dúvida de que você pode tudo, tudo, tudo, absolutamente tudo. Ao vencedor, a certeza do único jeito no ombro pintado de uma mulher. Ao vencedor, as batatas humanitistas da doída filosofia de sonhar, de sonhar, de apenas sonhar... E ao perdedor? Algumas coisas ficam conosco para o resto de nossas vidas, como aquele suvenir da infância que nos preencheu alguma falta depois que nos faltou durante todo o dia alguma espécie de ornato para que o dia fosse também mais colorido, ou como algum instante de luz maior que a própria claridade natural quando resolve fugir e ser apenas penumbra. Hoje posso ter a sensação única da totalidade de mim, mesmo sabendo que ainda não sou só isso. Arriscar o caminho da rua noturna, desafiar os fantasmas da rua e caminhar em direção ao meu fantástico paraíso. Meu porque só eu posso visitá-lo, meu porque só eu tenho as chaves dos portais que dão para a morada dos deuses. Sem grandes alegrias no quarto onde recobro minha consciência diariamente, encaro a rua da minha loucura. E, confesso, não me arrependo. Até quando precisarei do doce artificial que a vida me proporciona? Até quando não conseguirei vencer minhas vaidades? Até quando me portarei fraco diante dos verdadeiros medíocres? Até quando? Acreditar que a morte é a superação da dor talvez não seja a melhor escolha. Talvez não seja. Minha angústia pode estar amplificada. Devo continuar a refletir sobre a minha inumanidade e na humanidade dos homens - se é que tal virtude já existiu. Penso se ainda há em mim um resto que seja de infância e não chego a nenhuma conclusão. Hoje, perto do quintal fantástico da casa onde cresci e vivi a plenos pulmões até perto de meus quinze anos de idade, surgem certezas, num primeiro momento, desanimadoras. É quando eu me pergunto onde ficou aquele corredor interno onde eu chutava bolinhas feitas com papel amassado enrolado em meias velhas e furadas de um lado para o outro, quando me pergunto onde guardei todos aqueles caminhos bem sinalizados das estradinhas que eu mesmo fazia com giz ou caco de telha quebrada para logo depois começar a carcomer a pele de meu joelho de tanta alegria e euforia pela tarde inteira que deus me dava, quando me questiono sobre aquele menino tão cheio de sonhos e fantasias, procurador de coisas para inventar entre os ferros retorcidos e as geringonças quebradas no quarto das bagunças, quando me interrogo sobre os muros que tanto quis pular e pulei; quando tudo vem e o baque é tão grande que a gente precisa segurar firme no corrimão para não tombar pelos degraus da nova escada... Pergunto-me se me fizeram o animal que hoje sou, ou se eu já era assim pré-determinado. É que a gente sempre corre contra o tempo, mas ele sempre nos espeta a pílula da metamorfose. E, no meu caso, o efeito parece que ficou pela metade. Devo acreditar que sou uma criatura em processo, que atravesso um período alguma coisa parecida com o que costumam chamar de transformação. Eu tenho medo porque li Kafka e sei das consequências de uma mutação não desejada. Porque uma coisa que quero nessa vida é não incomodar as outras pessoas, ou incomodar pouco. E quando aqui me recolho para mais uma reflexão, a cadeia da contradição se alastra em mim, porque eu gosto de ler, escrever, do silêncio, de não ir, de não falar, de observar, e de outras coisas que só sabem ser agentes perturbadores. Minha forma de ser e de agir na maioria das vezes não passa despercebida. E pronto, turbilhão vivo! É o momento de exorcizar os demônios e tentar seguir em frente, porque obtive nítidas confirmações acerca de minha animalidade gentil. O certo é que hoje, depois de muito pensar e especular, minha vida passou despercebida, ao menos para mim. Para amanhã, guardo expectativas. Porque o hoje já se foi e o que eu tenho de certeza são meus vinte e poucos anos de idade. Não sou novo, não nasci ontem. Se eu quiser, posso já me considerar um velho. Ter vinte e poucos anos de idade é já ser velho, pelo menos para mim, é já ter uma vida longa vivida. Mas isso só se eu quiser. Por enquanto, não quero. Melhor deixar como está. Não vai mudar muita coisa se eu já me der o título de idoso. Não conseguirei nem uma cadeira prioritária num destes ônibus da coletividade. Se para idosos-idosos a coisa já está feia, imagine para mim, um pseudo-decrépito-autointitulado-sem-cabeça-alva. Sigo, dessa forma, minha odisséia. Não existe vida mais bonita que a minha. Leia-se "bonita" como "propícia às histórias livrescas e fenomenais, baseadas em eventos catastróficos-ínfimos de natureza casual-ou-não". E se você disser que não existe vida mais "bonita" que a sua, eu vou acreditar e aceitar, porque a vida de cada um é a vida mais "bonita" que existe. E a minha é a vida mais "bonita" que existe, e você deve aceitar sem titubeações. E um dia eu ainda descubro o porquê dos escritores quase sempre estarem certos... Mas, cuidado, amanhã posso agir como um ser deletério. Posso nocivo ao meu passado. Posso destruir coisas. Repito, posso destruir coisas.

4 comentários:

Germano Viana Xavier disse...

Crédito da imagem:

"Parking
by ~riko-kun
"
Deviantart

Letícia Palmeira disse...

Creio que falta um "ser" em algum lugar.

Seus textos são arautos. Porque dizem e escondem. É como ler Cortázar e ter de voltar e entender não entendendo. É auto-biográfico? É isto? É aquilo? De que adianta saber? O que serve é a palavra. Aí a gente se vê na temática: O que é ganhar? O que é perder? Acredito que um verbo não viva sem o outro. Estes dois se completam.

E das idades, são apenas números. Minha avó de 94 anos que o diga.

E prefiro batatas ao perder. Posso fazer malabarismos, purê ou deixar ver o que tempo espera de mim. O resto é caminhada.

Ana Lucia Franco disse...

Que coisa bonita esse texto, parece um vórtice de reflexões que vão crescendo e aprofundando, até arrematares com o reconhecimento do aspecto destrutivo inerente ao ser humano. Somos multifacetados, e o licor também guarda sua porção venenosa. Ah, e aos vinte e poucos eu era mais velha do sou hoje, isso é muito relativo.

um abraço e parabéns pela qualidade dos teus textos.

controvento-desinventora disse...

Profundo...profundamente lindo, humano e - porque a particularidade é boniteza de cada vida - torna-se um texto universal, posto que existencialista.